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No cooperativismo, a liberdade de entrar é a mesma de sair

Foto: Gabriel Richartz

O princípio número 1 do cooperativismo é a adesão livre e voluntária. Cada um pode entrar ou sair na hora que quiser. Para participar, basta estar disposto a cooperar e apto a fazer parte nos termos da lei e do estatuto da cooperativa.

Mas neste texto eu gostaria de jogar o foco em outro momento especial dessa relação: a hora de botar um ponto final. Da mesma maneira que você entra livremente, espera-se que, ao tomar a decisão de ir embora, saia sem impeditivos ou burocracias. 

Vou relatar a seguir um episódio recente na minha vida. Há alguns anos minha família mantinha um serviço de TV por assinatura, mas as crianças cresceram e deixaram de assistir. Coisas da vida contemporânea. Na última década o serviço de streaming transformou o setor de entretenimento e durante a pandemia a audiência de plataformas como Netflix e Amazon Prime Video cresceu quase 80% no país, em comparação com o ano anterior.

O fato é que decidimos cancelar o serviço. E foi aí que começou a via crucis. Na primeira tentativa, após inúmeros menus, caí na área de retenção e recebi uma proposta tentadora, porém questionável: quase 50% de desconto pelos seis meses seguintes para permanecer como cliente. Ora, ao longo de anos sem atrasar uma única mensalidade eu jamais fora contemplado com qualquer tipo de desconto. A sensação que tive foi a de ser recompensado ao me tornar um cliente em fuga, pois só recebi uma vantagem quando demonstrei a intenção de ir embora. Uma espécie de programa de fidelidade às avessas.

Aí veio a parte mais difícil: o cancelamento em si. Primeiro tentei pelo site, mas lá encontrei todas as opções possíveis, menos a de cancelar o serviço. Decidi ligar, mas confesso que a minha paciência já começava a se esgotar e a situação já se afigurava aflitiva. Aí ouvi a voz de uma gravação perguntar: “Você prefere fazer o cancelamento através do robô?” Me pareceu uma opção razoável, já que eu não precisaria perder tempo, e consegui o meu objetivo com surpreendente rapidez. 

Só que aquilo que no primeiro instante parecia bom virou um pesadelo. Nos dias seguintes, minha mulher e eu passamos a receber uma chuva de ligações, mensagens por SMS e e-mails pedindo a confirmação de dados e questionando a nossa decisão de cancelar. Um bombardeio que não respeitou nem o nosso fim de semana de descanso. Chegou ao cúmulo de uma atendente me ligar e informar que eu precisaria refazer com ela todo o caminho do cancelamento que eu já havia feito com o robô. Um tempo da minha vida que, decididamente, eu não estava mais disposto a dar à empresa. 

Dizem que todo mundo tem uma história parecida com a minha para contar. Não deveria ser assim. A liberdade de escolha precisa vir acompanhada da liberdade de pôr um fim à relação, seja como cliente ou como sócio, no caso das cooperativas. É por isso que o cooperativismo criou sete princípios que são aplicados em todos os países do mundo onde existe essa forma secular de organização. Ao ingressar, o associado compra quotas para integralizar o capital da cooperativa. Ao sair, recebe o valor corrigido, descontando eventuais obrigações contratadas por ele. 

Porém, a experiência de viver o dia a dia do cooperativismo e fazer parte das transformações positivas que ele promove na sociedade estimulam o desejo de permanência, pois trata-se de uma união de pessoas com propósitos comuns e capaz de gerar a prosperidade coletiva. Ainda assim, com base na minha experiência acima, hoje afirmo sem sombra de dúvidas que é mais fácil encerrar a relação com uma cooperativa, onde você é um dos donos, do que deixar de ser um simples assinante do serviço em algumas empresas. 

Uma boa gestão de cooperativa zela pela permanência do cooperado, mas jamais deve impedir sua liberdade de escolha. 

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CEO de cooperativa de crédito, autor de livros sobre cooperativismo e Influenciador Coop do Sistema OCB.

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