Novembro é marcado pela celebração do Mês do Empreendedorismo Feminino. Para comemorar a data, o Economia SC Drops terá edições especiais, com mulheres líderes referências no mercado.
Nesta entrevista, conversamos com Marcela Quint, CEO da Aurum, empresa de Florianópolis que desenvolve softwares jurídicos há mais de duas décadas usando tecnologias inovadoras. Confira abaixo:
Como surgiu o negócio e quais os principais aprendizados?
Marcela: A Aurum surgiu em 1993, quando os ex-sócios majoritários Antônio Gerassi Neto e Sônia Tuyama desenvolveram a primeira versão do Themis para grandes escritórios de advocacia. Na época, se percebeu que os escritórios e departamentos jurídicos tinham uma operação bastante complexa, mas muito repetitiva, e que boa parte poderia ser simplificada e automatizada com um software. A Aurum cresceu com o Themis e em 2010 atingiu a marca de mil clientes. Ainda naquele ano, os mesmos ex-sócios perceberam que havia uma oportunidade de ajudar também pequenos escritórios e advogados autônomos. Apesar de ser o mesmo mercado, os públicos são completamente diferentes. Um pequeno escritório ou um advogado que atua de forma autônoma têm uma complexidade de operação muito menor, mas uma sobrecarga de trabalho gigantesca. Nesse tipo de negócio os sócios, são responsáveis por tudo: desde o marketing, até a prospecção de clientes, estratégia, atuação jurídica, cobrança, finanças, etc. Foi a partir dessa necessidade que surgiu um novo produto: em 2011 o Neto e a Sônia se mudaram para Florianópolis e criaram uma (até então) spin off da Aurum para construir o Astrea. Foi aí que eu cheguei na Aurum, como uma das pessoas responsáveis pela criação e lançamento do Astrea. Desenvolvido especialmente para atingir esse público, o Astrea surgiu como um produto fácil de usar, na nuvem e de baixo custo. Hoje, isso pode parecer algo trivial, mas na época muito pouco se falava sobre produtos web. O Astrea foi lançado em 2013 e, oito anos depois, tornou-se o líder da categoria: o software de gestão mais usado por advogados e pequenos escritórios em 2022. Hoje, a Aurum atende mais de 12 mil clientes e conta com quase 80 mil advogados usando seus produtos. Eu iniciei minha carreira na Aurum na área de produto e, logo depois que o Astrea foi lançado, migrei para a área de Marketing – dada a necessidade que havia na época de vender esse novo produto. Em 2016, me tornei a líder do time de Marketing, em 2018, sócia da Aurum; em 2019, participei da venda da Aurum para o grupo canadense Vela Software e, em 2022, assumi o papel de liderar a Aurum como CEO. Quando eu entrei, a spin-off Astrea contava com apenas 13 pessoas. Para se ter uma noção, quando eu assumi como CEO, apenas o time de Marketing contava com 25 pessoas. Hoje a Aurum tem mais de 180 colaboradores espalhados pelo Brasil. Foram muitos os aprendizados nesses 11 anos. Vou tentar listar os principais:
1. Se a intenção for contribuir, vale a fala. Em muitos momentos na minha carreira eu me questionei se deveria ou não me posicionar. Se a minha ideia, opinião, ponto estava correto ou se seria apenas uma “perda de tempo” para os demais presentes. Não vou entrar aqui em detalhes sobre como nós, mulheres, muitas vezes, nos podamos porque crescemos e estamos inseridas numa sociedade que nos exige perfeição, etc. O que eu aprendi com o tempo é que: se a intenção for contribuir, a fala é válida. Até porque muitas vezes não é possível saber, antes de experimentar, se algo vai dar certo ou não, se está correto ou não. Então, quando eu estou presente em uma conversa, reunião, feedback, etc, eu sempre me questiono: como eu posso contribuir com esse momento? Existe algo que eu possa falar que vai ajudar?
2. Na maioria das vezes, timing é mais importante do que segurança. Boa parte dos profissionais passa o dia tomando decisões. Se essa pessoa profissional exercer um papel de liderança, as chances são que ela tome centenas ou até milhares de decisões num só dia. Em qualquer uma dessas situações, as chances dela acertar é de 50%. É impossível que uma pessoa tome apenas decisões corretas. E, por mais que seja essencial buscar conhecimento, não existe segurança de que algo de fato vai dar certo. Aprendi que é mais importante conseguir tomar uma decisão de forma ágil do que estar sempre certa. Durante o início da minha carreira, eu me cobrei muito para não errar. Com o tempo, percebi que isso era impossível. Isso não me tornou relapsa em relação às minhas decisões e em relação ao processo de tomada de decisão. Na verdade, me tornou mais atenta, porque eu pude direcionar a minha atenção não ao medo de errar, mas a entender o contexto e assumir riscos de forma consciente e presente.
3. Comprometimento não é algo que já vem pronto. Desde o início da minha carreira profissional, eu me considero uma pessoa extremamente comprometida. Quando eu comecei a liderar, achava que isso era um pré-requisito, que já vinha pronto nas pessoas: ou você é uma pessoa comprometida ou não. Com o tempo, percebi que isso não era verdade. Entendi que comprometimento vem de um exercício pessoal, mas tem uma relação direta com propósito e confiança. E construir isso é responsabilidade da liderança. Um bom líder cria um ambiente de confiança e investe tempo em explicar os porquês das decisões, aumentando o senso de propósito. Eu acredito que isso contribua diretamente com a performance e comprometimento dos colaboradores e gera um time mais unido e criativo.
4. Liderar para a empresa é liderar pessoas. Acredito que toda liderança já teve que tomar uma decisão difícil, como um desligamento, por exemplo. Em empresas que existe um ambiente de colaboração e proximidade, muitas vezes essas decisões passam por uma série de questionamentos: será que não seria possível ajudar ainda mais essa pessoa a se desenvolver? Será que já tentamos de tudo? Será que é o momento certo? Essa decisão é a decisão correta? Eu aprendi que na maioria das vezes essas perguntas não têm uma só resposta e que é impossível saber quando é o momento perfeito ou não para essa decisão. O que me ajuda a tomar uma decisão nesses momentos é: o que é o melhor para o time e para a empresa nesse momento? Num primeiro olhar, pode parecer uma análise fria, mas na verdade é o contrário disso. Eu aprendi que o time e a empresa são compostos por dezenas ou centenas de outras pessoas que contam com sua perpetuação e crescimento. Questionar o que é o melhor para essas outras pessoas é muitas vezes ampliar o olhar e tomar uma decisão mais holística.
5. Equilíbrio é essencial. Acredito que pra minha carreira foi tão importante eu me dedicar a viver um tempo livre e de qualidade tanto quanto foi importante me dedicar ao trabalho. Durante muitos anos eu trabalhei 12, 14 horas por dia. No início da minha carreira, chegava a trabalhar também aos sábados e passava o domingo dormindo de tão cansada. Não fazia isso porque eu precisava, mas fazia isso porque eu gostava e queria aprender mais, crescer mais. Mas faltava equilíbrio e anos depois eu tive meu primeiro (e espero que único) burnout. Hoje, eu percebi que meu corpo já me dava diversos avisos, mas não se falava tanto sobre burnout na época, então foi um momento bem nebuloso para mim. Me afastei do trabalho por algumas semanas, busquei ajuda e aos poucos percebi que para ser a profissional que eu gostaria de ser eu precisava, antes de tudo, ser uma pessoa feliz e saudável! Essa é uma longa história, mas em resumo: eu aprendi que ter momentos de descanso é ampliar horizontes e que isso na verdade me tornou uma profissional mais consciente e inteligente.
Se voltasse no tempo, que conselho daria para você mesma?
Marcela: Se eu pudesse voltar no tempo, diria pra confiar e seguir aprendendo. Eu tive muita sorte de encontrar pessoas incríveis e muito inteligentes no meu caminho.
O que te inspira e como você busca inspirar outras mulheres?
Marcela: Me inspira refletir sobre como tudo que a gente acessa, consome e se encanta hoje em dia passou pelas mãos de alguém. E que as mãos e mentes que criaram aquilo foram motivadas por alguma outra pessoa. Me inspira pensar em como vivemos em rede e como uma ação, por mais singela que seja, pode ter um impacto imenso na vida de outra pessoa. Eu, honestamente, não busco inspirar ninguém. Mas sempre que eu chego em qualquer lugar eu busco deixar aquele lugar pelo menos um pouco melhor do que eu encontrei. Isso vale para negócios, empresas, times e até mesmo para o dia a dia. Eu sou do tipo de pessoa que junta o lixo do chão, por exemplo. Se alguém vir isso e achar inspirador, que ótimo! Se não, pelo menos ficou um pouco melhor.
Como foi o processo de CMO para CEO da Aurum?
Marcela: Antes de me tornar CEO, eu passei por um processo de transição de quase dois anos. Na verdade, como é algo recente (assumi em julho deste ano), acredito que esse processo de transição ainda esteja acontecendo. O que eu quero dizer é que, antes de assumir nesse papel, eu me preparei por quase dois anos. O primeiro passo foi organizar o meu time de Marketing. Busquei organizar processos e desenvolver as lideranças da melhor forma que eu pude. Conforme o tempo foi passando, deleguei demandas e acompanhei as lideranças para repassar conhecimento. Foi um processo vivo e quando eu saí do time acredito que o time já não precisava mais tanto de mim. Essa era a intenção. O processo para assumir como CEO foi bem parecido, mas ao contrário. Aos poucos, fui assumindo novas demandas e o Neto (CEO da época), agia como um mentor. Conforme eu fui tendo dúvidas, errando e acertando, a gente conversava e ia revisando atitudes e decisões. Aos poucos, eu fui ampliando o meu olhar para além do Marketing, olhando para Receita, Produto, Tecnologia, Pessoas, etc. Foi um processo muito rico.
Quais as suas estratégias para a Aurum?
Marcela: Temos algumas coisas mapeadas nos próximos 5 anos, mas um resumo das principais: 1. Fortalecer ainda mais o Astrea, atendendo aos nossos atuais clientes e o mercado de advogados que cuidam de até 1000 processos ativos; 2. Aplicar os aprendizados do Astrea ao Themis: criar um processo de inovação contínua, colhendo feedbacks da nossa base e integrando o Themis também a outras ferramentas do mercado que apoiam grandes escritórios e departamentos jurídicos; 3. Transformar a Aurum numa empresa consolidada como remote-first, entregando a todos os áureos e áureas (como chamamos os nossos colaboradores) um ambiente rico em oportunidades e aprendizados e propício à nossa cultura de trabalho.
Em poucos meses como CEO e, agora, oficialmente sendo uma vertical da Vela, quais foram os principais desafios?
Marcela: Acredito que os principais desafios foram muito parecidos com qualquer mudança de posição, na verdade. Trabalhar com pessoas novas e desenvolver uma relação de confiança. Aprender sobre novas áreas, novos KPIs e desenvolver um olhar mais apurado para tomada de decisão, desenvolver uma nova rotina que equilibre reuniões, estudos e tempo livre. Aprender como comunicar as coisas da melhor forma… enfim.
Foram longos anos de evolução dentro da empresa até o cargo atual. Quais conselhos você dá a outras mulheres que almejam uma jornada de carreira?
Marcela: Acho que algumas coisas podem contribuir:
1. Se posicione e fale sempre que achar que pode contribuir com algo.
2. Às vezes, arranjar espaço vai ser difícil. Infelizmente nossa sociedade ainda não percebe o quanto alguns comportamentos tido como “naturais” podem ser um desafio para nós mulheres. Por isso, se possível, crie espaço. Quando interrompida, avise: você me interrompeu, eu ainda não acabei e continue.
3. Aprenda a dizer: não. Muitas vezes, confundimos ser uma profissional competente com “dar conta de tudo”. É importante saber priorizar, delegar e direcionar atenção para o que realmente precisa ser feito.
4. Use a rede para trocar vivências e peça ajuda para aprender mais. É provável que o desafio que você está vivendo já tenha sido vivido por alguma outra pessoa. Existem muitas pessoas profissionais incrivelmente competentes e super dispostas a ajudar, principalmente mulheres!
5. Você também faz parte da rede. Se possível, contribua também. Quando você achar que não tem muito a contribuir, lembre-se de onde você está e tudo que já executou
Segundo uma pesquisa da Grant Thornton, apenas 38% dos cargos de liderança no Brasil são ocupados por mulheres. Ainda que esse percentual seja maior que o último levantamento realizado (em 2019, o número estava em apenas 25%), quais os principais obstáculos que mulheres enfrentam para alcançar essas posições?
Marcela: Acredito que o principal obstáculo é justamente não ocuparmos esse lugar na maioria das vezes. Como é raro ver mulheres na liderança, o “modo automático” é continuar não havendo mulheres. Os líderes homens continuam dando a oportunidade para outros líderes homens e as mulheres continuam não ocupando esses lugares e não percebendo ser possível estar lá. Claro, que existe uma sociedade que ainda, por padrão, desenvolve homens e mulheres para papéis distintos e claro que existe uma tomada de decisão que é influenciada por essa criação. Mas, para além disso, acredito que um olhar mais simples e propositivo para a questão é de que existe uma falta de representatividade nas empresas. E isso é algo muito simples de ser mudado, na verdade. Mudando isso, geramos representatividade e damos oportunidades cada vez mais diversas e justas. E vai que isso reflete na nossa sociedade também, com o tempo? Eu espero que sim.