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“Woke” e a capa de 6 dedos da Veja

Foto: divulgação.

No dia 16 de fevereiro de 2024, a edição 2880 da revista Veja chegou nas bancas (nas poucas que ainda existem e resistem) de todo o Brasil, com uma capa que tinha em destaque uma imagem gerada por Inteligência Artificial (IA), seis dedos na mão de seu protagonista e uma grande machete: “O Exagero da Patrulha”. Exagerado mesmo, porém, foi o uso da IA.

Sei muito bem que existem, no mundo, pessoas com 6 dedos- condição é chamada de Polidactilia – e não há graça nenhuma nisso. Inclusive, o maior problema atrelado a essa condição é justamente o preconceito envolvido. É até vexaminoso pensar que já foi muito engraçado para o país, o boato espalhado pelo Pânico de que a Cicarelli teria um mindinho a mais no pé. 

Porém, dado o próprio contexto em que a imagem se apresenta, acredito que representar essa minoria em sua capa não foi o interesse inicial da revista. Tratou-se, na grande da verdade, apenas de uma imagem gerada sem revisão por uma Inteligência Artificial, o que enfraquece a autoridade da reportagem e atrela o uso da tecnologia ao ridículo.

A ilustração de 6 dedos na capa da Veja e o woke

A capa com ilustração de um jovem repleto de bottons apontando, de forma agressiva, o indicador de uma mão de 6 dedos para a cara do leitor exibe de forma poderosa e sem intenção, o que não fazer com a Inteligência Artificial. Parece até uma visão arcaica da tecnologia. E, de longe, não é algo que a revista ou o leitor merecem.

Veja só, a Veja é uma das mais importantes publicações da história do nosso Brasil. Foi criada em 1968, teve grandes personagens do Jornalismo brasileiro em sua redação e já publicou reportagens excelentes. É, até hoje, a revista de maior circulação do país e já foi a segunda semanal com maior tiragem do planeta, perdendo apenas para a sua própria inspiração, a estadunidense Time.

O problema que quero discutir não é a capa em si, mas, considerando que o sexto dedo foi não intencional, como que deixaram passar esse erro? É do bê-a-bá do uso da IA que as geradoras de imagem – como é o caso do Midjourney – têm muito problema com dedos e articulações. 

É o tipo de erro que implica em colocar toda a credibilidade da publicação em dúvida. Se não sabe usar a tecnologia em questão, será que essa quase sexagenária revista compreende os tempos que se propõe a debater nesta edição?

Usar tecnologia não é sinônimo de ser moderno tanto quanto a idade de alguém ou de um veículo nada tem a ver com a sua jovialidade. Mas é imprescindível que o Jornalismo seja atual, senão, passa a ser mais um conteúdo sem propósito.

Vale a pena ler a matéria de capa?

Sempre vale a pena ler o texto, conhecer o conteúdo e emitir a sua própria opinião. Esse é o meu posicionamento.

No entanto, para não deixar apenas nisso, vou trazer uma análise – que é o que imagino que você esteja buscando em algum nível.

Parece meio estranho falar de woke em pleno 2024. O termo teve um momento de maior pertinência que já passou depois de tanto ter sido alvo de textos, tweets e piadas de stand-up. Acredito, porém, que o tema possa representar uma grande novidade para os leitores da Veja mesmo que tenha chegado atrasado para mim.

O debate e a reflexão sobre “os limites da batalha pela justiça social” são bem necessários, afinal, se existem pessoas sendo machucadas por conta de extremismo, isso deve ser combatido.

Só que o texto da Veja, por vezes, se assemelha mais a um artigo de opinião do que a uma reportagem de fato – mesmo que essa não tenha sido a intenção original. Sinto falta de mais exemplos ou de mais equilíbrio para os dois lados trazerem seus pontos. E, por exemplo, bater na tecla da linguagem neutra – que não é unanimidade nem entre quem chama de woke – é aquele caminho tão comumente usado por quem é conservador que enfraquece todo o fio argumentativo. 

Eu concordo bastante, inclusive, quando o texto traz uma fala de Obama e reforça que ativismo não pode se limitar a criticar, tem que ir além e se tornar ação. Isso é fato consumado e estabelecido: Falar é fácil, agora, fazer… E é no ato que mora a real transformação. 

Porém, as palavras importam. Então, por mais exagerada ou ridicularizada que seja a forma com que você possa ver o movimento woke, outro ditado também é velho: A caneta é mais poderosa que a espada. O discurso liberta ou tortura. Algo que a maior revista do Brasil deveria saber.

Quando (ou não) usar a Inteligência Artificial

Recomendo que você tire alguns segundos para ver o vídeo acima, que foi exibido no intervalo do Superbowl. Que excelente comercial! Posicionamento político, humor que só os minions poderiam fazer e um gancho excelente para o filme que está chegando.

Talvez, algumas pessoas tenham se incomodado com o conteúdo por ser crítico ao uso da IA, mas não foi assim que vi. Interpretei como uma excelente graça tirada de quem quer trocar humanos por máquinas justamente naquilo que é muito nosso: Criatividade.

Vou além: No ano passado, Hollywood entrou em greve e conseguimos claramente ver o quão tóxica La La Land pode ser. Os trabalhadores de efeitos visuais se sindicalizaram e o terceiro filme do Aranhaverso teve que ser adiado, entre outros motivos, porque a equipe de animadores estava perto do burnout.

Era um excelente momento para os estúdios pensarem em quais atividades estão exaurindo os times e aplicarem seus investimentos em tecnologia para combater as queixas apresentadas pelas pessoas. Isso, claro, partindo do princípio de que não contratariam mais profissionais de fato ou os melhor remunerariam – Bob Iger, no seu lugar de fala de CEO da Disney e salário de R$130 milhões ao ano, falou que não havia dinheiro.

E digo mais: Além de facilitar a vida das pessoas já envolvidas na produção de uma animação, ao se automatizar processos repetitivos ainda existe a possibilidade dessa forma artística ser expressada por mais pessoas e empresas, eventualmente dando mais voz para um rol maior de contadores de história.

Mas o que aconteceu? Uma abertura de IA para a série Invasão Secreta da Marvel. Um tiro pela culatra pois, além da repercussão negativa dessa decisão, a introdução ainda precedia uma coletânea de episódios que desagradou massivamente críticos e fãs. Isso sem nem falar da ironia de que a proposta partiu da editoria conhecida como “casa das ideias” e que deve a própria existência a desenhistas.

No caso da Veja, tudo começa com uma simples pergunta: Alguém pediu por capas feitas por Inteligência Artificial?

A capa é uma das coisas mais importantes em tudo que entendemos de Jornalismo. Atrai a atenção do leitor, ajuda a sintetizar conceitos/reportagens e conta a história local, regional ou nacional. Uma capa bem feita é Arte e Jornalismo combinados ao seu ápice.

Mais do que só uma primeira página, é nela que fica a manchete do jornal e da revista, aquela que repórteres sonham em conseguir e que, por ela, tanto batalham. Nem sempre, a capa de toda edição é genial. Porém, é bom viver num mundo em que os profissionais se dedicam muito para chegar a essa seara ideal.

Entregar a capa – simbolizando, inclusive, o Jornalismo como um todo – na mão da Inteligência Artificial, sem revisão ou real envolvimento, quase que como um “se vira” é ir na contramão do que se espera do uso da tecnologia

Estamos apenas começando a viver na era do conteúdo gerado por Inteligência Artificial e se o Jornalismo não quiser ficar de fora da vida das pessoas, precisa fazer mais uso do que nunca de seu elemento humano. Por sorte, as redações estão repletas de grandes pessoas com uma paixão e dedicação ímpares, pois só assim para continuar sonhando em meio a tantos passaralhos – o termo mais correto para se referir a layoff.

Se a capa é feita por IA, a impressão que terei é de que o conteúdo também foi. E por que eu pagaria para ler algo feito por um algoritmo se consigo isso igualmente na Internet de forma mais simples, automática e barata?

Agora, a percepção não mudaria radicalmente se fosse uma ilustração única e impactante? Uma capa é bastante capaz de incentivar alguém não só a ler um texto como até a assinar uma publicação.

As capas não são heroínas que salvarão o Jornalismo de sua crise atual, mas certamente se forem acompanhadas por um material único e humano, criarão potentes conexões entre veículo e seu leitor – do tipo que marcas pagam muito caro para poderem fazer parte.

E não vou nem tocar no ponto de que Jornalismo que não é humano é só um amontoado de caracteres porque aí essa coluna vira e-book.

Para finalizar: Inteligência Artificial será tão comum nas redações quanto computadores. Mas, tal qual com qualquer máquina, deve ser uma ferramenta para potencializar tudo que a mente humana pode produzir. 

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Jornalista e marketing manager na AE Studio e Instill.

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