Por Julio Cesar Marcellino Jr, doutor em Direito, professor e advogado.
As inovações tecnológicas estão por todos os lados. Por vezes nem nos damos conta do quanto fomos envolvidos, do quanto dependemos delas. Desde a revolução industrial, muito se viu em relação ao avanço de novas técnicas, mas nada se compara ao que se produziu em termos de novas tecnologias nos últimos tempos. Nem a velocidade tem sido a mesma. Houve, como se sabe, um progresso absurdamente veloz de novas criações desde o final da década de 1990 com o surgimento da internet.
Desde as primeiras conexões na rede mundial de computadores até o atual momento, também chamado de Era da Hiperconexão, muitos avanços foram produzidos: smartphones, internet das coisas, mídias sociais (Facebook, Metha, Instagram, twitter/X, Telegram), computação em nuvem, entre outras. A vida em sociedade nunca mais foi a mesma. As interações sociais foram praticamente reinventadas e a vida social foi completamente redimensionada.
Pouco da vida em sociedade escapa do alcance do aparato cibernético. Nem o pensamento está completamente imune a influência das inovações tecnológicas. A lógica algorítmica, como bem se sabe, direciona todo o fluxo de informações e notícias a serem ofertadas ao usuário. Nem sempre o que escolhemos para consumir parte de decisões totalmente independentes ou isentas de influência. Essa, inclusive, é a “mágica” operada pelos algoritmos: atuarem como influenciadores invisíveis que nos fazem pensar que decidimos alguma coisa nesses tempos de consumo em rede.
Não é por acaso que ao falarmos próximo a um smartphone sobre a vontade de comprar um produto, ou se dermos alguns clicks no google em sua procura, seremos bombardeados por ofertas e propagandas de venda do produto almejado. Estamos sendo observados, monitorados e ouvidos nessa grande rede de vigilância que estrutura e oferece sustentação a rede cibernética. George Orwell já há havia nos avisado lá pelos idos do pós-guerra por meio de seu célebre texto distópico “1984”.
Mas quando falamos em tecnologia e seus estágios de desenvolvimento é importante destacar um avanço que não nos parece daqueles que representam uma mera fase ou período de progressão. Falo da Inteligência Artificial (IA). Como bem explicou Suleyman e Bhaskar, trata-se de uma tecnologia daquelas que viram paradigmáticas, capazes de criar uma nova era ou onda de transformações. Trata-se de uma verdadeira revolução tecnológica capaz de criar e impulsionar uma poderosa geração de tecnologias e robóticas genéticas.
Isto é dizer, que o progresso em uma determinada área acelera o progresso nas outras em um processo caótico de catalisações cruzadas que ultrapassa o controle de qualquer um em velocidade inestimável. Para se ter uma ideia, projeta-se que em 3 ou 5 anos a inteligência humana poderá ser totalmente superada pela IA. Em outras palavras, significa que muitas das atividades que desenvolvemos hoje poderão ser realizada com mais destreza, eficiência e qualidade pela IA. O ensino, em particular, é uma delas.
Nossa cultura de ensinar e aprender foi sempre muito calcada em uma visão determinista-positivista com priorização ao recurso da memorização. O fenômeno compreensivo ainda é encarado por muitos como um processo que ocorre em etapas segmentadas. Desde Gadamer sabemos que não é assim que ocorre. As técnicas foram se aperfeiçoando de maneira que o modo de apreender o conhecimento pudesse ser acompanhado de métodos que aprofundassem o pensar.
Esse sistema, ainda considerando suas falhas e o fato de desconsiderar os vieses cognitivos (já apontados por Kahneman) e os diferentes estados psíquicos tanto de quem ensina quanto de quem aprende, atendeu parcialmente a sua missão. Foi esse método que, de algum modo, permitiu com que fomentássemos nossa criatividade e astúcia para criarmos tecnologias que tanto sofisticaram a vida em sociedade, quanto implicaram em riscos irremediáveis.
Dos maiores desafios impostos pela IA é pensarmos como estruturaremos o modo de aprender e ensinar. Se nosso sistema de ensino tradicional é calcado na memória e na lógica de fases de aprendizagem, cientes das limitações da mente humana para a memorização, imaginemos os ganhos e riscos em manusear a IA com capacidade gigantesca de armazenamento de informações. Precisaremos rever nosso modelo de ensino e fazermos isso urgentemente.
O professor Li Jiang da Universidade de Standford, em entrevista ao Estadão de 13/04/2024, explica que o que os alunos aprendem em sala de aula geralmente não é muito inspirador por serem conhecimentos antigos. São importantes, afirma, mas não devem ser a única coisa. Jiang pensa o sistema educacional de olho também no futuro do trabalho, e afirma que competiremos com o ser humano mais a inteligência artificial. Ou seja, as habilidades humanas como a criatividade, a comunicação e a inovação serão fundamentais para a futura desenvoltura profissional, e torna-se necessário potencializá-las no período inicial de formação educacional.
A questão é como fazermos isso na prática. Momentos como o nosso, de transição tecnológica de virada paradigmática, são sempre mais sensíveis e complexos. Precisamos educar nossas crianças para um futuro em que, talvez, muitas das profissões hoje existentes não mais existam. E o agravante é que não sabemos precisar no tempo quando isso irá ocorrer. Profissões tradicionais, podem ainda durar muito tempo, tais como engenheiro, administrador, advogado, médico, contador, dentista, etc. E o acesso a essas profissões, mediadas por universidades e seus processos seletivos, ainda exige métodos tradicionais de memorização para vencer todas as etapas.
Então o que nos resta é conjugarmos, na medida do possível, os diferentes sistemas. Devemos estruturar e qualificar o método tradicional de ensino, tanto quanto devemos fomentar nos alunos a capacidade de subjetivação e de criação. O atual sistema de ensino brasileiro ainda tem suas raízes na lógica de aprendizado do final do século XIX, época da revolução da eletricidade em que a energia elétrica substitui a força física estabelecendo um novo paradigma em sociedade. O mercado de trabalho, há época, exigia atividades repetitivas.
Hoje não é disso que precisamos no ensino ou no mercado de trabalho. A IA poderá realizar tais atividades operacionais e de repetição com muito mais destreza e eficiência do que a inteligência humana. Aliás, isso já é uma realidade. Se nos dermos conta, basta vermos o exemplo dos veículos autônomos, que já trafegam pelas ruas de grandes centros urbanos. A previsão é de os acidentes de trânsito sejam drasticamente reduzidos com veículos não mais dirigidos por humanos.
Enfim. Não temos uma receita pronta em relação ao sistema de ensino ideal. Ainda somos tentados a pensar em modelos e padrões. Essa é uma tendência de nosso cérebro, como bem se sabe. O problema é que se pensarmos em um sistema de ensino para respostas de longo prazo correremos o risco de fracassar, eis que a complexidade de nossos tempos exige cada vez mais respostas de curto prazo.
O aprender não pode ser uma exclusividade dos centros de ensino. Deve-se aprender nas empresas, nos centros de culto, nas entidades e nas demais oportunidades de convívio social. Deve-se aprender, sobretudo, por meio das plataformas digitais. Não há mais volta. Temos que lidar com as vantagens e riscos da IA de modo equilibrado. Com criatividade e capacidade subjetiva deveremos forjar também um aparato que imponha limites a essas novas tecnologias. Se fomos capazes de criar todas essas incríveis invenções haveremos de ter capacidade de controlá-las e superar as teorias distópicas e pessimistas sobre o nosso futuro na relação com as máquinas.
Prognósticos são arriscados e não recomendados nessa quadra da história. Que tenhamos otimismo, resiliência e sabedoria para encontrarmos o melhor caminho na necessária conciliação entre o uso de tecnologias e nossas necessidades humanas. Que o criador se imponha à criatura e do seu melhor tire proveito.