Em comemoração ao Dia Mundial da Propriedade Intelectual, a coluna desta semana traz uma conversa com o Guilherme Coutinho sobre como as contribuições de criadores, inventores e empreendedores estão expandindo os limites da inovação e da criatividade para criar músicas que unem as pessoas, evocam emoções poderosas, impulsionam mudanças e inspiram um futuro mais inovador.
Ele é advogado, professor e fundador da Phonolite, empresa especializada em direitos autorais e mercado da música. Tem ainda doutorado pela USP e mestrado pela UFSC.
O Dia Mundial da Propriedade Intelectual deste ano destaca como a criatividade e a inovação, apoiadas pelos direitos de Propriedade Intelectual, mantêm uma cena musical próspera que beneficia a todos, em todos os lugares e nos convida a explorar como os direitos de Propriedade Intelectual e as políticas de inovação capacitam criadores, inovadores e empreendedores a trazer novas ideias para a indústria musical, salvaguardando o trabalho de compositores, intérpretes e todos aqueles que moldam a música que nos move. Você gostou do tema deste ano? Acha importante discutirmos PI da indústria da música?
Sim, e por várias razões. A música é uma das formas mais poderosas de expressão humana: ela evoca emoções, constrói memórias coletivas e atravessa fronteiras com uma naturalidade que poucos produtos culturais conseguem. Discutir propriedade intelectual nesse contexto não é apenas pensar em contratos ou registros — é pensar em como protegemos e valorizamos os criadores que tornam tudo isso possível. Muitas vezes, o debate sobre a “indústria da música” se concentra em dados, plataformas, tecnologias e modelos de negócio — e esquece que no centro de tudo estão pessoas. Compositores, intérpretes, produtores, técnicos. Seres humanos que criam a partir da própria história, da cultura que carregam, daquilo que sentem e vivenciam. E que, não raro, são tratados como engrenagens substituíveis dentro de um sistema que gira rápido demais. Finalmente, o público é parte fundamental e destino de tudo isso. A música só ganha sentido quando encontra alguém que a ouve, se emociona, compartilha, canta junto e, cada vez mais, recria e participa do processo. Proteger a propriedade intelectual é também garantir que o público continue tendo acesso a uma produção cultural viva, diversa e sustentável — e não apenas a conteúdos replicáveis, fabricados por algoritmos. A propriedade intelectual pode equilibrar essa balança: garantir que o valor simbólico e econômico gerado por uma obra retorne, de forma justa, a quem a criou — sem esquecer que essa criação existe para tocar alguém. Isso vale em escala global. A música circula sem passaporte e não respeita fronteiras.
Você, além de todo o seu currículo, é também músico. O que despertou em você o desejo de se especializar na área de Propriedade Intelectual para a indústria musical? O fato de você também ser músico te ajuda a entender e entregar resultados mais qualificados para os seus clientes?
Comecei a tocar guitarra com 14 anos e montar uma banda foi um caminho natural, bem antes de pensar em estudar direito. Foi justamente dessa vivência prática que veio o incômodo — perceber que, na indústria da música, a música em si é só uma parte da equação. Muita gente boa assina contratos sem entender as cláusulas, deixa de registrar obras, perde dinheiro por não saber como funciona o fluxo da arrecadação. Eu vivi isso de dentro. Foi essa realidade que me empurrou para o estudo — e quanto mais eu estudava, mais percebia a necessidade de construir pontes entre o direito e o mercado criativo. Ter passado pelas duas pontas me ajuda hoje a atuar com mais precisão: eu conheço a lógica do estúdio, da composição coletiva, dos cachês mal pagos, das dúvidas na hora de subir uma música no digital. Isso me permite entregar soluções jurídicas que não são apenas corretas do ponto de vista técnico, mas que fazem sentido dentro da dinâmica real da música, sem precisar usar uma linguagem indecifrável.
Qual o tamanho do mercado musical no mundo e no Brasil? Como as plataformas de streaming mudaram este mercado?
O mercado global de música gravada alcançou US$ 29,6 bilhões em 2024, marcando o décimo ano consecutivo de crescimento, com um aumento de 4,8% em relação ao ano anterior. O streaming foi o principal motor desse crescimento, representando 69% da receita total, com mais de 752 milhões de assinantes pagos globalmente.
No Brasil, o cenário é igualmente promissor. O país é o nono maior mercado mundial, com um crescimento de 21,7% em 2024, impulsionado principalmente pelas receitas de assinaturas pagas, que aumentaram 28,4%. Sempre repito que não conheço outra área da economia com tantos anos de crescimento contínuo e em que o Brasil cresça acima da média mundial. O streaming transformou profundamente a indústria musical. Democratizou o acesso, permitiu que artistas independentes alcançassem públicos globais e alterou a dinâmica de distribuição e consumo de música. No entanto, essa revolução também trouxe desafios significativos: a remuneração por reprodução é frequentemente baixa, o volume de lançamentos é massivo e o modelo de divisão de receitas favorece grandes players, especialmente grandes gravadoras. Diante desse cenário, é essencial que artistas, produtores e gestores compreendam a lógica do ecossistema digital. A música, além de expressão artística, tornou-se um ativo digital indexado em algoritmos. Proteger os direitos autorais, gerir a carreira com estratégia e negociar contratos de forma consciente são passos fundamentais para garantir sustentabilidade e reconhecimento no ambiente musical contemporâneo.
Quais os principais cuidados que criadores, inventores e empreendedores do cenário musical devem ter a fim de garantir sua Propriedade Intelectual?
O primeiro passo é entender que a música, além de expressão artística, é também um ativo — e todo ativo precisa de gestão. Cada elemento gera direitos específicos: a composição, a gravação, o show, o nome artístico… Todos esses aspectos envolvem regras próprias e exigem atenção estratégica. Muitos artistas acham que basta gerar um ISRC para “estar protegido”, outros nem isso conseguem. Na prática, a proteção passa também por contratos bem estruturados, clareza sobre quem detém quais direitos e em que condições, e principalmente por boas decisões desde o início do projeto. É na origem que se define se os frutos do trabalho voltarão — ou não — para quem criou. Outro ponto crucial é não terceirizar totalmente a compreensão jurídica. Contar com assessoria especializada é essencial, mas o artista ou empreendedor precisa ter um mínimo de familiaridade com os conceitos. Isso evita armadilhas como cessões integrais sem contrapartida, contratos com cláusulas abusivas ou negociações que comprometem receitas futuras. A gestão da propriedade intelectual pode ser uma ferramenta de liberdade — ou uma corrente que te prende. Quando bem compreendida e estruturada, ela permite que o criador escolha seus caminhos, negocie de forma estratégica, explore sua obra com autonomia e recuse propostas que não respeitem seu valor. Por outro lado, quando negligenciada ou mal conduzida, a PI pode aprisionar o artista em contratos desequilibrados, perder valor ao longo do tempo ou até ser apropriada por terceiros. Conhecer seus direitos é o que permite transformar talento em independência — e criação em legado.
Como o advento das Inteligências Artificiais generativas está impactando o mercado da música? É possível a convivência de IAs generativas com a proteção dos direitos dos criadores?
Estamos vivendo um ponto de inflexão. As IAs generativas já são capazes de compor, interpretar, imitar vozes, estilos e arranjos com um grau de sofisticação que até pouco tempo parecia ficção científica. Isso transforma a forma como se produz música — mas também desafia frontalmente os fundamentos da proteção autoral. Utilizo o verbo “produzir”, ao invés de “criar”, intencionalmente. As perguntas que surgem são novas, mas urgentes: quem tem titularidade sobre um produto gerado por IA? Quem detém os direitos sobre algo construído com base em milhares de obras humanas? É possível usar essas obras como insumo sem autorização ou remuneração? O que acontece quando a tecnologia imita a voz de um artista ou o estilo de uma banda, sem qualquer envolvimento deles? A resposta não está em barrar a tecnologia, mas em entender seus limites. Músicas já eram compostas antes de existir copyright. E produtos de IA vão continuar sendo gerados, com ou sem regulação. O que precisamos discutir é: o que disso é protegido por direito autoral? O que é obra, e o que é apenas resultado estatístico de um sistema alimentado por criações alheias? O Copyright Office dos Estados Unidos tem apontado uma direção importante: sem intervenção humana relevante, não há proteção autoral. Um simples prompt não basta. Usar o Word para escrever um livro não faz da Microsoft coautora, mas neste exemplo é um ser humano que vai ser responsável pelo texto. Quando uma ferramenta devolve vinte páginas prontas com base num comando, ou 20 versos de uma letra musical, proteger isso como se fosse fruto de um processo criativo humano parece um erro conceitual — e jurídico. Além disso, é preciso considerar o cenário em que tudo isso acontece. O streaming e as tecnologias que facilitaram a produção musical já haviam colocado o setor numa era de abundância. O número de lançamentos é massivo. Agora, com a popularização da IA, um único prompt pode gerar centenas de variações da mesma música em poucos segundos. Estamos caminhando para uma enxurrada de conteúdos como nunca se viu — e isso vai exigir, mais do que nunca, critérios para distinguir o que é produção mecânica e o que é criação com identidade, contexto e intenção. A IA pode ser uma ferramenta útil. Mas ela precisa ser entendida como instrumento — e não como substituto. A proteção legal tem que seguir o que está na origem da criação: seres humanos, com ideias, escolhas, intuição e propósito.