A inteligência artificial (IA) entrou de vez nas mesas de reunião e nos discursos estratégicos das empresas. De uma hora para outra, tornou-se difícil encontrar um plano de negócios, uma apresentação comercial ou uma fala de liderança que não mencione IA como fator decisivo para o futuro. Mas no meio desse entusiasmo legítimo, surgiram dois movimentos distorcidos que atrapalham mais do que ajudam: o IA Washing e o que chamamos de IA Messiah. Ambos, embora opostos, têm um ponto em comum: comprometem a inovação real.
O IA Washing acontece quando empresas exageram ou falsificam o uso da inteligência artificial para parecerem mais inovadoras. Já o IA Messiah representa o oposto — profissionais que, por dominarem a tecnologia, passam a agir como se fossem autoridades absolutas, deslegitimando visões críticas e colaborativas. Enquanto um vende o que não tem, o outro usa o que sabe para impor e excluir. E nos dois casos, quem perde é o processo de transformação real.
Por isso a importância de mergulhar nos dois extremos para entender por que acontecem, como se manifestam no dia a dia das organizações, quais são os sintomas visíveis e, principalmente, como empresas e profissionais podem evitar cair nessas armadilhas. E assim contribuir para um uso mais honesto, estratégico e colaborativo da IA no ambiente de negócios.
Mas o que é IA Washing?
O termo IA Washing é inspirado em outros “washings” conhecidos, como greenwashing (quando empresas exageram seu compromisso ambiental). No caso da IA, trata-se de inflar artificialmente o uso de inteligência artificial como estratégia de marketing ou valorização de produto. O que vemos, na prática, são empresas usando o rótulo “com IA” em soluções que sequer envolvem aprendizado de máquina, algoritmos autônomos ou qualquer forma real de automação inteligente.
Segundo pesquisa da Gartner, até 2025, 30% das mensagens de marketing de empresas de tecnologia usarão termos relacionados à IA, mesmo sem suporte técnico para isso. Esse número revela uma corrida por reputação, não por resultado. E isso impacta negativamente o ecossistema de inovação, pois gera confusão no mercado e reduz a credibilidade de quem realmente entrega projetos com base em inteligência artificial.
Acontece também em pitches de startups, onde incluir “AI” no discurso aumenta as chances de captar investimento, mesmo que o produto não contenha IA de verdade. Um estudo da MIT Sloan Management Review mostrou que investidores tendem a valorizar 15 a 20% a mais empresas que mencionam IA, independentemente da comprovação técnica. Isso gera um incentivo perigoso para exagerar ou mentir.
O problema não é só ético. É operacional. Quando líderes compram soluções maquiadas como IA e não veem resultados concretos, cria-se um ciclo de frustração, ceticismo e retrabalho. Projetos são cancelados, equipes desmotivadas e a inovação passa a ser vista como “modismo”, não como transformação.
E o IA Messiah?
Se o IA Washing é marketing sem substância, o IA Messiah é o ego sem contexto. Refere-se ao comportamento de especialistas em IA que, por deterem conhecimento técnico profundo, passam a se comportar como se fossem detentores absolutos da verdade. Essa postura se manifesta em falas inquestionáveis, desprezo por áreas não técnicas e dificuldade de dialogar com pessoas de outras disciplinas.
O IA Messiah não quer explicar. Quer impressionar. Usa jargões, estatísticas e fórmulas como ferramentas de exclusão e não de construção. O problema é que isso afasta times, bloqueia colaboração e transforma a inovação em um processo vertical, autoritário e centrado em uma única cabeça. E inovação real é, por definição, um processo coletivo.
Há ainda um risco ético importante. Quando um especialista se torna messiânico, ele pode conduzir decisões sensíveis com base apenas em sua visão pessoal. Em ambientes onde IA está sendo usada para decisões de crédito, saúde ou contratação, isso pode gerar exclusões, vieses e injustiças que escapam ao controle institucional. Um relatório da Harvard Business Review de 2023 alertou que 6 em cada 10 líderes que usam IA em decisões de pessoas (promoções, contratações, demissões) não compreendem os critérios algorítmicos usados.
O mais grave é que a cultura do IA Messiah silencia dúvidas. Quando profissionais sentem que não têm espaço para perguntar, questionar ou propor alternativas, cria-se um ambiente tóxico, onde a IA deixa de ser ferramenta de avanço para virar símbolo de poder. E quando isso acontece, não há transformação verdadeira, só aparência de progresso.
Como esses extremos afetam a inovação?
Ambos os fenômenos, IA Washing e IA Messiah, impedem que a inovação ocorra de forma orgânica, ética e alinhada ao negócio. O primeiro gera ceticismo. O segundo, opressão. No meio disso, ideias boas deixam de ser exploradas, pessoas deixam de colaborar e empresas deixam de avançar.
Na prática, o IA Washing descredibiliza a IA. Quando líderes se sentem enganados por promessas vazias, a tendência é resistirem ao uso da tecnologia no futuro. Já o IA Messiah cria barreiras internas. Times deixam de contribuir, não se sentem parte do processo e perdem a chance de cocriar soluções mais inteligentes e sensíveis ao contexto.
Outro impacto direto está na governança. Em um cenário saudável, decisões baseadas em IA devem ser transparentes, auditáveis e compartilhadas. Mas quando a IA é tratada como “milagre” (IA Messiah) ou “maquiagem” (IA Washing), perde-se o controle técnico, jurídico e estratégico da sua aplicação.
Por fim, o maior prejuízo está na cultura organizacional. Inovação não é só sobre tecnologia, é sobre comportamento. Quando o ambiente é contaminado por ilusões ou arrogância, até as melhores ferramentas perdem valor. E as empresas deixam de inovar não por falta de IA, mas por excesso de ego e ausência de propósito.
Cuidado e precaução
Evitar esses dois extremos exige intenção, política interna clara e educação digital contínua. No caso do IA Washing, o primeiro passo é exigir transparência técnica. Toda solução que se diz baseada em IA deve apresentar quais algoritmos usa, como aprende, quais dados utiliza e quais são os limites da sua atuação. Se a empresa não sabe explicar, provavelmente não está aplicando IA de verdade.
Além disso, as lideranças precisam adotar uma postura de ceticismo construtivo. Isso não significa rejeitar novas tecnologias, mas sim perguntar, investigar, pedir demonstrações reais e colocar à prova as soluções antes de implementá-las em escala. Testes A/B, projetos-piloto e métricas de ROI são aliados nesse processo.
No combate ao IA Messiah, a chave está na criação de ambientes multidisciplinares. Times de dados precisam trabalhar ao lado de RH, jurídico, operações, comunicação e outras áreas. A IA deve ser traduzida em linguagem acessível, discutida coletivamente e testada sob múltiplas perspectivas. Nenhum especialista, por mais brilhante que seja, deve decidir sozinho.
Também é fundamental desenvolver uma cultura organizacional baseada em aprendizado compartilhado. Isso inclui treinamentos acessíveis, rodas de conversa sobre IA, espaços seguros para dúvidas e uma liderança que valoriza mais a escuta do que a imposição. IA não é mágica, nem ameaça, é ferramenta. E ferramentas só têm poder quando colocadas nas mãos certas, do jeito certo.
Transformação precisa ser o objetivo
A inteligência artificial pode, sim, transformar empresas, processos e modelos de negócio. Mas, como toda tecnologia poderosa, exige critério, ética e responsabilidade. O IA Washing e o IA Messiah são atalhos perigosos, um pela ilusão do marketing, outro pela arrogância do saber.
Evitar esses extremos não exige tecnologia de ponta, exige cultura de base. Exige diálogo entre áreas, critérios claros de uso e, acima de tudo, humildade. A humildade de quem reconhece que a IA é uma ferramenta poderosa, mas não é , e nunca será, um substituto para o bom senso, a colaboração e a inteligência humana.
Se sua empresa quer realmente inovar com IA, comece fazendo as perguntas certas. Nem toda promessa é real. Nem todo especialista é líder. Mas todo projeto de IA bem aplicado começa por onde poucos querem olhar: a consciência crítica sobre o que estamos construindo juntos.