Existe uma forma de inércia que parece inofensiva à primeira vista. Ela se apresenta como bom senso, experiência, maturidade profissional. Aos poucos, vai moldando comportamentos, silenciando questionamentos, organizando o trabalho em torno do que já foi testado e aprovado. Essa inércia tem nome: normose, a tendência de aceitar como normal aquilo que, na prática, deixou de fazer sentido há muito tempo.
Essa normalidade é confortável porque dispensa esforço intelectual. Não exige reposicionar, nem rever o que está funcionando apenas pela metade.
Ela aparece em decisões corporativas, modelos de negócio, rotinas de equipe e condutas individuais. E, o mais preocupante: é muitas vezes valorizada como sinônimo de estabilidade. Mas o mundo atual, marcado por mudanças tecnológicas rápidas e um mercado que exige adaptação constante, não oferece espaço para quem se apega ao que sempre foi.
É esse tipo de comportamento que se esconde atrás do “sempre foi assim”, mas que, quando analisado com rigor, revela um padrão limitante. Se alastra por ambientes profissionais, muitas vezes imperceptível, até que seus efeitos se tornam evidentes: falta de inovação, aumento de retrabalho, desmotivação. E por trás dessa aparente normalidade, há números que não mentem.
Um paradigma a ser vencido
No mercado, esse paradigma equivocado se mantém por força de hábitos culturais. Profissionais são estimulados a adotar o perfil do “ideal worker”: longas jornadas, disponibilidade ininterrupta, priorização da produtividade em detrimento da qualidade de vida. Esse modelo pode parecer produtivo à primeira vista, mas acaba custando caro à saúde individual e organizacional. Em estudos sobre o ambiente financeiro, por exemplo, essa cultura reforça desigualdades e afeta o bem-estar, inclusive mental . Ainda assim, muitos ambientes reforçam essa lógica, como se ela fosse a única rota possível.
Por outro lado, iniciativas disruptivas já demonstram seu valor. Um exemplo é o programa ROWE (Results-Only Work Environment), implementado pela Best Buy em 2003. Numa cultura focada em presença e horário, o ROWE se destacou por valorizar resultados em vez de tempo. O resultado? Relatórios apontam 35% mais produtividade e 90% menos rotatividade voluntária entre seus colaboradores. Além disso, em equipes onde o programa foi efetivo, a retenção de talentos aumentou e os custos de turnover caíram significativamente. Ainda assim, esse modelo enfrentou resistência, especialmente de quem estava acostumado com o modelo de “dedicação física visível” .
Dentro das organizações, a normose aparece com força em burocracias internas. Processos que antes tinham sentido se tornam vetustos com o tempo, mas continuam em vigor. Em um estudo da McKinsey, mais de 70% dos líderes afirmam que a inovação é prioridade. No entanto, apenas 22% definem métricas concretas para isso, evidência clara de que preservar a norma pesa mais do que desbravar a novidade. Essa lacuna aponta que muitos preferem manter o status quo, mesmo que isso inviabilize o progresso real.
Nas equipes, padrões silenciosos moldam o comportamento. Reuniões desnecessárias são aceitas, decisões vêm de cima, contrapor opiniões pode ser visto como conflito. Um estudo sobre cultura ágil indica que organizações com ciclos de decisões rápidos e aprendizagem contínua têm 70% mais chances de figurar no topo da performance organizacional . Do contrário, ambientes rígidos engessam o potencial coletivo, aprisionando boas ideias.
Já em relação à carreira individual, a normose é traiçoeira.
Profissionais começam empolgados, mas conforme buscam pertencimento, tendem a adotar comportamentos esperados, mesmo que sejam contrários ao propósito. No início da minha carreira, adiei ajustes importantes para não gerar atritos. O resultado? Processos que travavam entregas e desmotivavam o time. Quando finalmente propus mudanças apoiadas por dados, obtivemos reduções de prazos em até 30% e aumentamos o engajamento. Esse é o impacto direto de sair da normose.
O poder do pensamento crítico
A normose só se sustenta enquanto evitarmos o incômodo de questionar.
Desafiá-la requer cultura de escuta, métricas bem definidas, testes de formato e abertura real para o erro como mecanismo de aprendizagem. Pequenos gestos, como eliminar uma reunião repetitiva, rever um fluxo ou abrir espaço para discordância, podem servir de catalisador.
O cenário já demonstra que confiar em resultados, e não mais no “tempo em posição”, funciona. Ainda mais numa era de transformação digital e inteligência artificial. A McKinsey estima que 92% das empresas pretendem investir em IA nos próximos três anos, mas apenas 1% se considera madura na área. Isso indica que, mais do que tecnologia, o bloqueio está na cultura e na incapacidade de questionar o modelo vigente para abraçar o novo.
Combatida com dados, escuta e corajosas iniciativas experimentais, a normose se mostra vulnerável. Ela perde força quando percebemos o custo real de mantê-la: repetição de processos ultrapassados, perda de motivação, fragilização frente à concorrência. E isso vale para indivíduos em qualquer nível hierárquico.
Estamos diante da encruzilhada: continuar reproduzindo padrões ou escolher, sistematicamente, mudar pequenas peças, mesmo quando instigam desconforto. Porque o que foi normal uma vez pode ser o maior empecilho para alcançar o que é excepcional hoje.
A normose profissional não se manifesta de forma notável, mas nos detalhes: uma agenda cheia de reuniões improdutivas, um processo que ninguém revisa, uma política interna que sobrevive mais pela tradição do que pela eficácia. Se disfarça de prudência, mas bloqueia a transformação. E quando se instala, compromete não só a eficiência, mas a vitalidade de uma carreira inteira.
Os dados confirmam isso: empresas que desafiam seus próprios padrões, como no caso do modelo ROWE, registram ganhos concretos em produtividade, retenção e engajamento. Já aquelas que mantêm seus processos apenas porque são “seguros” correm o risco de perder talentos, atrasar entregas e, no limite, se tornarem irrelevantes. A reflexão não é opcional. É estratégica.
Não é uma questão de abandonar tudo o que é conhecido, mas de fazer perguntas mais criteriosas. O que ainda funciona? O que virou ritual? O que pode ser melhor? Carreiras que se destacam não são as que evitam o incômodo, mas as que sabem navegar por ele com inteligência. E organizações que crescem são aquelas que ensinam seus líderes e equipes a revisar o caminho com frequência.
Não por desconfiança, mas por compromisso com o que pode ser melhor.