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Rescisão indireta vira saída legal para jogadores em clubes endividados

Foto: divulgação

Por João Antonio de Albuquerque e Souza, presidente do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJD-AD).

A estabilidade contratual entre clubes e jogadores de futebol no Brasil tem sido posta à prova com frequência, especialmente diante de reiterados casos de inadimplência. A legislação trabalhista brasileira, notadamente o artigo 483 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), prevê a possibilidade de rescisão indireta do contrato de trabalho quando o empregador, neste caso, o clube, descumpre suas obrigações, como o pagamento de salários, direitos de imagem ou depósitos do FGTS. Sendo o futebol um grande negócio, a judicialização de vínculos trabalhistas se torna reflexo da falta de profissionalismo de muitas diretorias.

O episódio mais recente envolve o atacante Rony, que, apesar de ter negado publicamente a intenção de deixar o Atlético-MG, acionou a Justiça para cobrar direitos trabalhistas pendentes, uma tentativa de proteger seus interesses financeiros. Após a divulgação da ação trabalhista de Rony, vieram à tona outras notificações extrajudiciais de atletas ao clube, incluindo Scarpa, Arana e Igor Gomes, que também enviaram comunicados cobrando valores atrasados.

Esse cenário é agravado por normas específicas do esporte. A Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023), em seu artigo 90, autoriza a rescisão indireta do contrato de trabalho do atleta profissional quando houver atraso igual ou superior de dois meses no pagamento de salário, direito de imagem, depósito de FGTS, abono de férias, décimo terceiro salário, gratificações e quaisquer outras verbas inclusas no contrato. Em tal caso, o atleta fica liberado para defender outro clube.

A jurisprudência brasileira tem sido clara e tende a conceder ao jogador o direito de romper unilateralmente o contrato, com base legal e respaldo ético. Em 2020, por exemplo, o zagueiro Paulo André conseguiu a rescisão indireta com o Cruzeiro, recebendo cerca de R$ 1 milhão em salários atrasados, direitos de imagem e FGTS. Em 2018, o atacante Robinho cobrou mais de R$ 2 milhões do Atlético-MG por atrasos em direitos de imagem, resultando em um acordo extrajudicial.

Um dos casos mais emblemátícos é o de Gustavo Silva, que protagonizou uma ação semelhante com o Corinthians em 2024. Após entrar na Justiça por atraso no pagamento de FGTS, o jogador optou por seguir com o processo de desligamento. A rescisão foi publicada no Boletim Informativo Diário (BID) da CBF, liberando o atleta para atuar por outra equipe. Ele acertou com o Vitória e, por ter obtido a rescisão unilateral na Justiça, pôde disputar a Série A do Campeonato Brasileiro mesmo após já ter feito mais de sete partidas pela equipe anterior, número que normalmente inviabilizaria uma nova inscrição.

Embora essas ações sejam frequentemente associadas a supostos “gestos de ingratidão” por parte dos jogadores, o que está em jogo são os direitos trabalhistas assegurados por lei. Jogadores de futebol, apesar da imagem midiática e dos altos salários em alguns casos, também enfrentam instabilidade profissional e dependem do cumprimento rigoroso dos contratos para manter sua carreira e segurança financeira. A inadimplência sistemática não só compromete o vínculo com o atleta, como também desvaloriza o patrimônio do clube, que perde ativos importantes sem compensação financeira.

Esse cenário expõe uma falha estrutural no modelo de gestão de boa parte dos clubes brasileiros. Assinar contratos sem garantir o fluxo de caixa necessário para cumpri-los é, na prática, uma forma de negligência administrativa. A possibilidade de rescisão indireta funciona, portanto, como um mecanismo de equilíbrio entre as partes, e como um alerta para os dirigentes. Clubes que não se organizam financeiramente para manter seus compromissos colocam em risco seus próprios investimentos e mancham sua imagem institucional.

A rescisão indireta não é apenas um direito do atleta, mas também um mecanismo de proteção ao próprio clube. Ao permitir que o jogador busque a rescisão em caso de inadimplência, a legislação incentiva os clubes a serem mais responsáveis ao assumir compromissos financeiros. Afinal, o jogador representa um patrimônio importante para o clube, e a perda desse ativo pode resultar em prejuízos esportivos e financeiros significativos. A jurisprudência favorável aos atletas deixa claro que o talento em campo precisa ser acompanhado por responsabilidade fora dele, do contrário, o risco de novas rescisões e prejuízos bilionários continuará rondando os bastidores dos gramados.

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