Por Caio Fontenelle, chef de cozinha e fundador dos restaurantes Figueira, Oliv e Pepper Jack, em Blumenau.
A gastronomia vive um momento de alta competitividade. Atualmente, não basta mais ter um prato saboroso ou um ambiente agradável. Afinal, isso é o mínimo esperado. O verdadeiro diferencial está na competência de gestão, ou seja, na capacidade de oferecer qualidade, padrão e consistência em cada detalhe. E é aí que entra um elemento muitas vezes negligenciado, mas absolutamente essencial: a ficha técnica.
Costumo dizer que ela é a espinha dorsal de um restaurante. Tudo, desde a cozinha até o estoque e das compras à precificação, gira em torno dela. Uma ficha técnica é muito mais do que uma receita: é um documento detalhado que descreve, em medidas precisas, como um prato deve ser executado. Ela elimina o improviso e garante que o cliente que prova um prato hoje encontre o mesmo sabor e apresentação daqui a dois anos.
Esse é o segredo das grandes redes gastronômicas que atuam em modelo de franquia. O que o cliente mais busca ali é o padrão. Ele sabe exatamente o que vai encontrar, independente de qual lugar do mundo esteja. E esse padrão só é possível porque cada processo, cada ingrediente, cada grama é controlado.
No meu caso, trago essa metodologia de outras indústrias. Antes da gastronomia, trabalhei durante anos no setor têxtil, área em que uma simples camiseta exige uma ficha detalhada, com quantas gramas de malha, quanto de ribana, que tipo de fio e qual processo de estamparia. Tudo é descrito com precisão, porque cada variação impacta diretamente no custo e no resultado final.
Quando comecei a aplicar esse raciocínio na cozinha, há quase vinte anos, isso era pouco comum na cidade que é sede dos meus restaurantes, Blumenau (SC). E ainda hoje, mesmo depois de tanto tempo, acredito que muitos restaurantes não tenham fichas técnicas bem estruturadas.
Mas por que elas são tão importantes? A ficha técnica garante o padrão. Se um funcionário sai e outro entra, o novo integrante não precisa ser ensinado sobre cada detalhe que irá executar. Basta seguir a ficha técnica, com quantidades exatas, fotografia do prato e sequência de montagem — reduzindo assim o tempo de treinamento e evitando o risco do “achismo” na cozinha.
O documento, ao invés de indicar “três ovos” ou “duas xícaras de farinha”, especifica 110 gramas de ovo e 300 gramas de farinha — medidas que eliminam variações de tamanho, umidade ou peso. Essa precisão transforma o preparo em um processo técnico e reproduzível, que garante que o prato mantenha sempre o mesmo sabor, textura e aparência.
Por conta de sua precisão, a ficha técnica permite um controle certeiro de custos e estoques. Com ela, é possível saber quanto se gasta de cada insumo, quanto custa produzir cada prato e qual deve ser o preço final para manter a rentabilidade. Muitos empreendedores ainda trabalham no modelo antigo, simplesmente dobrando o custo para formar o preço de venda. Mas o mercado mudou: é preciso saber exatamente o quanto cada prato custa.
Tudo isso forma um ciclo de eficiência que sustenta o negócio. A ficha técnica é ferramenta de gestão, de qualidade e de sobrevivência em um mercado cada vez mais exigente.
Hoje, é comum encontrar modelos de fichas prontas na internet, mas o desafio está em implantá-las de forma realista, dentro da rotina de um restaurante. Pequenos empresários muitas vezes acumulam diversas funções — gestão, estoque, compras, RH — e acabam deixando o controle técnico em segundo plano. Mas é justamente esse controle que separa um restaurante amador de um empreendimento sólido.
Nos meus restaurantes, o acompanhamento é constante. Fazemos contagens de estoque semanais e mensais, revisamos fichas, ajustamos processos e mantemos o compromisso de nunca mudar a base das receitas. É isso que garante que o cliente sempre encontre o mesmo sabor em cada prato.
Ficha técnica não é inovação, é fundamento. E é ele que sustenta tudo o que vem depois.