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Split payment e fluxo de caixa: o novo desafio da reforma tributária

Foto: divulgação.

Por Mirian Cidral, CFO da Global Hub de Soluções de Relacionamento e Cobrança.

Antes mesmo de se adaptarem à complexidade do novo sistema tributário, as empresas brasileiras vão enfrentar um desafio direto no caixa.

A partir de 2027, está previsto entrar em cena o split payment, mecanismo que antecipa o pagamento de tributos para o momento exato da transação.

O modelo, que será facultativo nas operações entre empresas (B2B) num primeiro momento, promete simplificar a arrecadação, mas pode tensionar o capital de giro das companhias, especialmente em vendas a prazo.

Todo esse cenário de mudança está ancorado em uma reestruturação ampla do sistema tributário brasileiro.

A partir de 2026, entra em vigor um novo modelo de impostos sobre o consumo baseado em dois tributos principais: a CBS, de competência federal, e o IBS, de competência estadual e municipal. Eles substituirão, progressivamente, PIS, COFINS, ICMS e ISS.

O cronograma é longo, mas os impactos serão sentidos desde o início. Em 2026, começa a cobrança simbólica de 0,1% para CBS e 0,9% para IBS, com testes controlados em operações específicas.

Durante essa fase inicial, o novo sistema conviverá com o atual, exigindo das empresas uma operação fiscal paralela com emissão de documentos com dupla escrituração de tributos.

A partir de 2027, a CBS já entra com alíquota cheia, enquanto o IBS sobe gradualmente até alcançar sua plenitude em 2033.

Nesse período, o split payment passa a ser oferecido como alternativa também nas operações B2B, inicialmente de forma facultativa, mas com expectativa de ampliação progressiva até se tornar padrão.

Na prática, o que antes servia como fôlego temporário no caixa, e ajudava a bancar folha, fornecedores e operação, deixará de existir. O impacto é silencioso, mas profundo. E quem não se planejar agora pode ser atropelado pelas consequências em poucos anos.

Split payment: desafio para o fluxo de caixa

Inspirado em modelos internacionais, o split payment, ou pagamento segregado, impõe uma lógica completamente diferente à circulação do dinheiro nas operações comerciais.

Em vez de o valor total da nota fiscal ser pago ao fornecedor, para que este posteriormente recolha os tributos, o imposto será automaticamente separado no momento do pagamento e transferido diretamente ao governo. A empresa recebe apenas o valor líquido.

A proposta, sob o ponto de vista da arrecadação, é eficiente: reduz fraudes, evita inadimplência e antecipa o ingresso dos recursos públicos. Mas do ponto de vista empresarial, representa uma mudança estrutural na forma de operar o caixa.

O impacto é ainda mais sensível em vendas com prazos longos ou contratos recorrentes, onde o descompasso entre a realização da receita e o recolhimento do tributo pode gerar buracos financeiros que antes eram amortecidos com o uso temporário desses valores.

Toda essa engrenagem será viabilizada por uma nova estrutura digital chamada Registro de Operações com Consumo (ROC), que funcionará como a espinha dorsal do split payment. É o ROC que vai receber os dados da nota fiscal, validar a operação e instruir a segregação automática do pagamento entre a conta da empresa e o Fisco.

Ou seja, o sistema bancário ou de pagamento só poderá processar corretamente a divisão dos valores se estiver conectado ao ROC. Isso impõe um desafio técnico às instituições financeiras, mas também às empresas, que precisarão garantir que seus ERPs e sistemas de faturamento estejam plenamente integrados a esse ambiente.

Outra dificuldade é que muitos detalhamentos técnicos ainda dependem de: regulamentação por parte do Governo Federal, definição dos padrões de integração, APIs (interfaces de programação de aplicações) e convenções com bancos e arranjamentos de pagamentos.

Empresas prestadoras de serviços B2B, por exemplo, que já operam com margens apertadas e têm pouca geração de crédito tributário, tendem a sentir mais intensamente os efeitos do split payment.

Ao emitir uma fatura de R$ 100 mil com pagamento em 90 dias, o que muda não é que ela terá que antecipar o pagamento do imposto com recursos próprios, mas sim que, quando o cliente fizer o pagamento, o valor será automaticamente dividido: estima-se que R$ 75 mil vão para a conta da empresa, e R$ 25 mil serão transferidos diretamente ao Fisco.

Ou seja, a empresa passa a operar com um valor líquido menor do que o faturado, reduzindo o fôlego de caixa que antes existia entre a emissão da nota e o recolhimento do tributo. Isso muda completamente o perfil financeiro da operação.

A pressão será especialmente forte para empresas com prazos estendidos, modelos de faturamento escalonado ou atuação intensiva em contratos de longo ciclo.

A gestão do caixa, que já exige precisão, passará a demandar capacidade preditiva, renegociação de prazos e estratégias de financiamento mais agressivas. Em muitos casos, será necessário revisar contratos vigentes para acomodar a nova realidade.

Serviços B2B na linha de frente da tensão

Embora a implementação do split payment no B2B comece de forma opcional em 2027, setores que operam com serviços entre empresas devem se preparar com antecedência. Serviços, ao contrário da indústria ou do varejo, tendem a acumular pouco crédito tributário sobre insumos.

Isso significa que o impacto do recolhimento antecipado de tributos não será compensado facilmente na cadeia.

Segmentos como tecnologia, consultorias, marketing, advocacia, engenharia e facilities trabalham com prazos de recebimento dilatados e alto peso de folha na composição de custos.

É exatamente esse perfil que será mais afetado pela nova lógica de liquidação líquida. O risco é real: as empresas terão alterações no fluxo de caixa.

A adoção do split payment nesse segmento exige, portanto, um trabalho integrado entre as áreas de tesouraria, planejamento, jurídico e comercial. É hora de revisar modelos de faturamento, simular impactos de diferentes prazos de recebimento e repensar a formação de preços em contratos novos.

Ignorar esse movimento pode significar uma perda contínua e silenciosa de liquidez operacional, mesmo com vendas em crescimento.

Negócios B2B devem acompanhar desde já os projetos-piloto e testes conduzidos nos anos iniciais da reforma, aproveitando a chance de aprender com a experiência alheia.

Idealmente, ao se aproximar o período de adoção obrigatória no segmento empresarial, a empresa já terá seus sistemas preparados para emitir documentos fiscais nos novos formatos e integrar o mecanismo de segregação de pagamento em seus fluxos de faturamento.

Isso inclui assegurar que, ao emitir uma NF-e, todos os cálculos de IBS/CBS sejam feitos corretamente e informados, que o sistema consiga comunicar-se com as interfaces governamentais para reportar a operação e que os módulos financeiros registrem de imediato os créditos a que a empresa tem direito.

Empresas que utilizam sistemas legados ou customizados podem considerar investir em soluções especializadas ou atualizações de versão fornecidas por desenvolvedores de software fiscal, garantindo conformidade com a Lei Complementar 214/2025 e suas regulamentações.

A tentação de enxergar a reforma tributária apenas como uma simplificação pode custar caro.

Para empresas B2B, especialmente do setor de serviços, o split payment é um divisor de águas, uma mudança silenciosa, mas capaz de modificar a dinâmica do caixa de forma permanente caso não seja antecipada estrategicamente.

A boa notícia é que ainda há tempo. A adoção do novo modelo será escalonada, e 2027 funcionará como um campo de testes voluntário.

Quem começar a simular, adaptar sistemas, rever políticas de faturamento e redesenhar contratos agora, chegará à fase obrigatória com maturidade operacional e domínio do impacto financeiro.

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