Eu não sei vocês aí mas eu curto poder viajar para algum país. Já tive a oportunidade de conhecer o Chile, o Paraguai, a Argentina, a Alemanha, a Espanha, a Itália e a Holanda, todos nessa ordem. Sempre como turista, ficando pouco tempo e conhecendo o máximo que eu pude com a grana que tinha.
Dessa lista, eu destaco aqui a Itália: um país no qual eu já tive a oportunidade de conhecer em dois diferentes momentos.
Nos últimos dias aqui em casa, a gente vem comentando sobre a possibilidade de realizarmos a cidadania italiana. Sinceramente, é algo que estamos só começando a pesquisar a respeito e nem sei onde isso vai dar.
E vou te falar, é um processo composto de certidões, de comprovantes, de documentos e necessidade de passar um tempo em solo italiano que chega a desanimar. Uma burocracia impressionante.
Burocracia, é aí que eu quero chegar. Hoje em dia, todo tipo de coisa (não ilícita, é claro) pode entrar e sair dos países com certa facilidade, menos as pessoas.
O que eu quero falar aqui é trazer para a mesa a lógica das fronteiras e sobre o nosso recente histórico de querer complicar algo inerentemente humano, como a migração entre territórios.
Com uma breve liberação das fronteiras, teríamos um incremento de 65 trilhões na economia global. E é sobre esse impacto, entre outros pontos, que eu vim falar no meu texto de hoje.
Provavelmente você vem acompanhando o mais recente conflito entre nações que estamos vivendo: os ataques da Rússia contra a Ucrânia. Uma afronta à soberania ucraniana em função dos caprichos políticos de um presidente russo vaidoso que vem colocando a vida de civis em risco além de afundar diariamente a economia de ambos os países.
O contexto dessas guerras me traz a questão das fronteiras e como elas representam uma forte burocracia pela livre circulação das pessoas e, se já não bastasse, um atraso econômico sem precedentes.
Como um ex-aluno do curso de Economia, sei que o exercício de prever consequências econômicas no mundo é um puta produto de analistas e diretores de bancos mundo à fora. Mas e aí? O quanto isso é válido a não ser pela especulação financeira que gira em torno disso?
O economista John Kenneth Galbraith uma vez brincou que o único objetivo das previsões econômicas era dar uma imagem melhor à astrologia.
E o lance de abrir as fronteiras e seus impactos econômicos, diferentemente das combinações dos astros, dos ascendentes e das visões polêmicas de pensadores econômicos controversos, tem uma fundamentação comprovada.
Quatro estudos diferentes demonstram que, dependendo do nível do movimento no mercado de trabalho global, o crescimento estimado do “produto mundial bruto” seria na faixa de 67% a 147%. De modo efetivo, estamos falando aqui que fronteiras abertas tornariam o mundo inteiro duas vezes mais rico do que é hoje.
Um economista chamado John Kennan, da Universidade de Wisconsin, calculou que fronteiras abertas aumentariam a renda de um angolano médio em cerca de 10 mil dólares por ano, e a de um nigeriano em 22 mil dólares por ano.
O surgimento das fronteiras como barreiras burocráticas
Mas você sabe da onde surgiu essa burocracia para entrar e sair de países? Aconteceu há pouco mais de 100 anos.
Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, fronteiras existiam sobretudo como linhas no papel. Passaportes eram raros, e os países que os emitiam de fato (como a Rússia e o Império Otomano) eram vistos como pouco civilizados. Além disso, aquela maravilha da tecnologia do século XIX, o trem, estava prestes a eliminar as fronteiras entre países para sempre.
Então explodiu a guerra. De repente, fronteiras foram fechadas para manter espiões do lado de fora e todas as pessoas necessárias ao esforço de guerra dentro de seus países.
Numa conferência em Paris em 1920, a comunidade internacional chegou aos primeiros acordos sobre o uso de passaportes. Naqueles dias, qualquer pessoa que tentasse viajar teria que providenciar dúvidas de vistos, passar por centenas de postos de controle de entrada com guardas e ser revistada inúmeras vezes.
E se vivemos, hoje, num mundo muito mais conectado, essa herança de guerra ainda prevalece.
Parece estranho, mas o mundo está aberto para tudo, menos para pessoas. Produtos, serviços e ações cruzam o globo. A informação circula livremente, a Wikipedia está disponível em pelo menos 300 línguas, e a Agência Nacional de Segurança americana pode, com facilidade, verificar com quais jogos você costuma brincar em seu smartphone.
Mas você deve pensar: mas Pacheco, e as restrições de barreiras fiscais sobre produtos e serviços como parte de uma política de proteção do mercado interno? Pois bem, de acordo com o Fundo Monetário Internacional, remover as restrições que ainda existem sobre o capital iria libertar, no máximo 65 bilhões de dólares.
Agora, anote aí o impacto que teríamos na economia ao abrir as fronteiras para a mão de obra: 65 trilhões de dólares.
E é muito interessante entender que vivemos em uma globalização que aceita de tudo menos a mão de obra. Bilhões de pessoas são forçadas a vender seu trabalho por uma fração do que realmente mereceriam graças justamente às fronteiras. Com isso, é como se disséssemos que as fronteiras são a principal causa de discriminação em toda a história. E isso impacta diretamente na desigualdade social.
A desigualdade econômica entre as pessoas que vivem no mesmo país não é nada em comparação com a desigualdade entre as pessoas de cidadania diferentes.
Hoje, os 8% mais ricos ganham metade de toda a renda mundial e o 1% mais rico possui mais da metade de toda a riqueza no planeta. O bilhão de pessoas mais ricas do planeta dão conta de 72% de todo o consumo do mundo.
Com toda essa desigualdade, não surpreende que milhões de pessoas pensem em sair dos seus países todos os anos em busca de melhores condições de vida.
Se a disparidade salarial é grande dentro do nosso próprio país, quando olhamos além das fronteiras, isso é ainda maior. Um cidadão mexicano que vive e trabalha nos EUA, por exemplo, ganha mais de 2x o que seu compatriota ganha vivendo no México.
Um americano ganha quase 3x mais pelo mesmo trabalho que um boliviano, mesmo quando têm os mesmos nível de capacitação profissional, idade e sexo. Em comparação com um nigeriano, a diferença é um fator de 8,5, e isso já ajustado pelo poder de compra nos dois países.
Podemos dizer que no século XXI, a verdadeira elite não é formada apenas por quem nasceu na família ou na classe social certa, mas sim no país certo. Mesmo assim, essa elite moderna não tem ideia de quanto é sortuda.
O impacto das fronteiras na criação de preconceitos
E se já não bastasse toda a complexidade desse contexto, há ainda uma certa solidariedade seletiva muito forte, principalmente contra pessoas negras. A solidariedade que recebe inúmeros ucranianos brancos e de olhos claros, inspirando o mundo e gerando boas histórias na televisão, não é a mesma para imigrantes africanos ou muçulmanos que vivem no país.
Para quem tem uma visão mais enviesada sobre toda essa situação, é fácil pensar que a abertura das fronteiras poderia promover uma série de problemas sociais. Mas é importante ponderar essas afirmações.
Todo imigrante é terrorista? Se dependesse de 90% dos noticiários que assistimos por aí, a resposta seria sim.
Aqui abro um breve parêntese: a influência da mídia me lembra o levantamento que o governo chinês publicou no último mês de fevereiro sobre os conflitos que ocorreram entre 1945 e 2001, colocando os EUA como os responsáveis por iniciar 81% dos 248 conflitos armados. A influência das histórias que são criadas na grande mídia mal deixa a gente perceber esses números.
E até falando nos Estados Unidos, entre 1975 e 2015, foram cerca de 30 anos sem que houvesse uma pessoa morta por algum ataque terrorista. Foram 41 pessoas mortas além das 2.983 no 11 de Setembro. Isso dá uma média de 1 pessoa por ano sendo morta por algum terrorista estrangeiro.
Até para contrapor esse preconceito, uma pesquisa de 2016 aponta que a imigração, na verdade, é associada ao declínio em atos terroristas, justamente pelo desenvolvimento econômico provocado pela imigração.
Todo imigrante é criminoso? Não de acordo com os dados. Na verdade, pessoas em busca de numa nova vida nos Estados Unidos cometem menos delitos e acabam na prisão com menos frequência do que a população nativa.
Em 2004, o primeiro estudo extensivo a explorar a conexão entre etnia e delinquência juvenil foi realizado em Roterdã. Dez anos depois vieram os resultados. A correlação entre proveniência étnica e criminalidade é precisamente zero. Nada, nenhuma. A criminalidade entre os jovens, afirmava o relatório, tinha origem na vizinhança onde eles cresciam.
Ou seja, em comunidades mais pobres, adolescentes de origem holandesa eram tão propensos a se envolver em atividades criminosas quanto aqueles de minorias étnicas.
Todo imigrante vai roubar seus empregos? Foi o mesmo medo que ocorreu em 1970 quando um grande número de mulheres entrou no mercado de trabalho. Aqui, há uma percepção errada de que o mercado de trabalho é uma constante dança das cadeiras. Mulheres produtivas, idosos ou imigrantes não vão tirar o emprego dos bons trabalhadores homens, jovens e cidadãos natos.
Na verdade, isso cria mais oportunidades de emprego. Um número maior de trabalhadores no mercado significa mais consumo, mais demanda e mais empregos. Simples assim.
Não é uma dança das cadeiras, mas sim, uma grande festa em que os recém-chegados trazem ainda mais cadeiras para se sentarem.
Todo imigrante nunca retorna para o seu país. Isso traz um paradoxo interessante: fronteiras abertas estimulam o retorno de imigrantes aos seus países de origem.
Por exemplo, nos anos 1960, milhões de mexicanos cruzaram a fronteira para os EUA, mas, depois de algum tempo 85% deles voltaram para casa. Desde os anos 1980, em especial após o 11 de Setembro, o lado americano da fronteira se tornou fortemente militarizado, com uma muralha de mais de 3 mil quilômetros de extensão e vigilância reforçada por câmeras, sensores, drones e 20 mil agentes de segurança na patrulha de fronteira. Hoje apenas 7% dos imigrantes ilegais mexicanos retornam a seu país.
Não é à toa que o número de mexicanos ilegais nos EUA subiu para 7 milhões em 2007 — sete vezes mais do que em 1980.
É hora de abrirmos os portões
Pouco mais de 30 anos depois da queda do muro de Berlim, o mundo tem mais barreiras do que nunca.
Os humanos não evoluíram permanecendo no mesmo lugar. O desejo de ir para outras terras está no nosso sangue.
Volte algumas gerações e quase todo mundo tem um imigrante na sua árvore genealógica. Veja a China moderna, onde há 20 anos a maior migração na história levou ao influxo de centenas de milhões de chineses do campo para a cidade. Mesmo causando alguns problemas e muitas mudanças, a migração, ao longo de toda a história, tem provado ser um dos mais poderosos estimuladores do progresso.
O Artigo 13º da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todos têm o direito de deixar seus países, mas não garante a ninguém o direito de entrar em lugar nenhum do mundo.
Mas uma coisa é certa: se quisermos criar um mundo melhor, não há como ignorar a importância da migração. Bastava abrir uma frestinha a mais nas fronteiras e já iria ajudar.
Se todos os países desenvolvidos deixassem entrar apenas 3% a mais de imigrantes, os pobres do mundo já teriam 305 bilhões de dólares a mais para gastar, dizem pesquisadores do Banco Mundial. Essa soma equivale a 3x o total de toda a ajuda financeira a países em desenvolvimento.
Enquanto isso, seguimos nossos planos de viajar mais vezes e curtir o que inúmeros países mundo à fora podem nos proporcionar. Sendo turistas, sendo imigrantes, sendo o que for.
Só sei que essa utopia para um mundo melhor reduzindo a burocracia das fronteiras ou até eliminando-as, poderia acontecer num futuro breve.
Texto baseado no livro Utopia para Realistas, de Rutger Bregman.