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A morte da caloria

Crédito da foto: Gold Pão.

Por mais de um século, contamos com as calorias para nos dizer o que nos fará engordar. É hora de sepultar a medida mais enganadora do mundo

A primeira vez que Bruno Dantas pensou que ia morrer, ele estava sentado no sedã Chrysler deu seu pai com um amigo, ouvindo música. O estudante de engenharia de 22 anos estava estacionado perto de sua casa, e na luz crepuscular ele não percebeu dois homens tatuados se aproximando. Sua música predileta tinha acabado de começar quando os membros da gangue apontaram armas para os jovens.

Assim começou uma provação de 24 horas. Determinado e robusto, Dantas foi escolhido como o mais obstinado da dupla. Ele foi vendado e espancado. Um dos assaltantes eventualmente o jogou no chão, colocou uma arma na parte de trás de sua cabeça e disse que era hora de morrer. Ele desmaiou, acordando em um campo com as mãos amarradas atrás das costas, quase nu.

Dantas sobreviveu, mas traumatizado, afundou na depressão. Logo, ele começou a beber em excesso e a comer compulsivamente. Seu peso disparou de 70kg, uma figura esbelta, para 103kg.

Isso o levou à sua segunda experiência quase fatal, oito anos depois, em 2007. Ele lembra de acordar e piscar diante de luzes intensas: estava sendo conduzido em uma maca para a sala de emergência de um hospital, com um ataque grave de arritmia cardíaca, ou batimento cardíaco irregular. “Um cardiologista me disse que se eu não perdesse peso e não colocasse minha saúde sob controle, estaria morto em cinco anos”, diz ele.

A segunda crise forçou Dantas, tardiamente, a lidar com o trauma do primeiro incidente. Para auxiliar com o que ele agora compreende como transtorno de estresse pós-traumático, ele começou a fazer aconselhamento e a tomar antidepressivos e medicamentos para ansiedade. Para tratar de sua saúde física, ele tentou perder peso. Esse esforço o lançou no centro de um dos debates científicos mais acalorados da nossa era: as guerras das calorias, um intenso desacordo sobre dieta e controle de peso.

Hoje, mais de uma década após o sério aviso de seu cardiologista, Dantas se mudou para uma cidade mais pacata. Ele está relaxado e confiante, exceto quando dois tópicos são mencionados. Ao relembrar seu sequestro, seu olhar cai, seu sorriso desaparece e ele fica notavelmente mais silencioso, embora afirme que seus ataques de pânico praticamente desapareceram. O outro tópico sensível é o controle de peso, o que o faz balançar a cabeça com raiva pelo que ele e milhões de outros que fazem dieta passaram. “É simplesmente ridículo”, diz ele com exasperação e um toque de veneno. “As pessoas estão vivendo com uma dor real e culpa, e tudo o que recebem são conselhos confusos ou simplesmente errados.

A orientação que os médicos de Dantas lhe deram, juntamente com uma série de nutricionistas e suas próprias pesquisas online, foi unânime. Seria familiar para milhões de pessoas que já tentaram fazer dieta. “Todo mundo diz que para perder peso você precisa comer menos e se mexer mais”, diz ele, “e a maneira de fazer isso é contar suas calorias.

Em seu peso mais elevado, o índice de massa corporal (IMC) de Dantas – a relação entre sua altura e peso – atingiu 35,6, muito acima da marca de 30 que os médicos definem como clinicamente obeso. A maioria das diretrizes governamentais indicava que, como homem, ele precisava de 2.500 calorias por dia para manter seu peso (o alvo para mulheres é 2.000). Nutricionistas disseram a Dantas que se ele ingerisse menos de 2.000 calorias por dia, um “déficit” semanal de 3.500 significaria que ele perderia 0,5kg por semana.

Com um trabalho de engenheiro em um hospital, ele sabia que seria preciso disciplina para reduzir sua forma rechonchuda. Mas, como seus sequestradores perceberam rapidamente, ele é uma pessoa incomumente determinada. Ele começou a se levantar antes do amanhecer todos os dias para correr 10km. Ele também passou a contabilizar cada pedaço de comida que consumia.

Eu preenchia planilhas do excel todas as noites, todas as semanas e todos os meses, listando tudo o que eu comia. Isso se tornou uma verdadeira obsessão para mim”, diz Dantas. Foram embora os Whoppers do Burger King, tacos fritos recheados com carne de porco e queijo, e sanduíches recheados com carne, feijão, abacate e pimentões. Também foram embora seu fluxo regular de cerveja e vinho. Entraram em cena sanduíches cuidadosamente medidos com queijo com baixo teor de gordura e peru, saladas, suco de pêssego enlatado, gatorade e coca zero e barras de cereal de baixa caloria.

Eu estava sempre cansado e com fome, e ficava realmente mal-humorado e distraído”, diz ele. “Eu pensava em comida o tempo todo.” Ele era constantemente informado de que, se acertasse as contas – consumindo menos calorias do que queimava a cada dia – os resultados apareceriam em breve. “Eu realmente fiz tudo o que se supõe fazer”, insiste com o tom de um aluno que fez a lição de casa e ainda assim falhou em uma grande prova. Ele comprou uma série de dispositivos de monitoramento de exercícios para medir quantas calorias estava gastando em suas corridas. “Disseram-me para me exercitar por pelo menos 45 minutos, pelo menos quatro ou cinco vezes por semana. Na verdade, eu corria por mais de uma hora todos os dias.” Ele seguiu uma dieta com baixo teor de gordura e baixa em calorias por três anos. Simplesmente não funcionou. Em certo momento, ele perdeu cerca de 10kg, mas seu peso aumentou novamente, embora ele ainda restringisse suas calorias.

Os que fazem dieta ao redor do mundo estarão familiarizados com as frustrações de Dantas. A maioria dos estudos mostra que mais de 80% das pessoas recuperam qualquer peso perdido a longo prazo. E, como ele, quando falhamos, a maioria de nós assume que somos preguiçosos e, portanto, culpados.

Como regra geral, é verdade que se você consumir significativamente menos calorias do que queima, você emagrecerá (e se consumir muito mais, você engordará). No entanto, as inúmeras dietas da moda oferecidas a nós a cada ano contradizem a simplicidade da fórmula que Dantas recebeu. A caloria como medida científica não está em disputa. Mas calcular o conteúdo calórico exato dos alimentos é muito mais difícil do que os números ditos precisos exibidos nas embalagens. Dois alimentos com valores calóricos idênticos podem ser digeridos de maneiras muito diferentes. Cada organismo processa calorias de maneira diferente. Mesmo para um único indivíduo, o horário das refeições importa. Quanto mais investigamos, mais percebemos que contabilizar calorias fará pouco para nos ajudar a controlar nosso peso ou mesmo manter uma dieta saudável: a sedutora simplicidade de contar calorias ingeridas e calorias gastas é perigosamente falha.

A caloria é ubíqua na vida diária. Ela recebe destaque nos rótulos informativos da maioria dos alimentos e bebidas embalados. Cada vez mais restaurantes listam o número de calorias em cada prato em seus cardápios. Contar as calorias que gastamos tornou-se igualmente padrão. Equipamentos de academia, dispositivos de fitness em nossos pulsos, até mesmo nossos telefones nos informam quantas calorias supostamente queimamos em uma única sessão de exercícios ou ao longo do dia.

Não foi sempre assim. Por séculos, os cientistas presumiam que era a massa de alimentos consumidos que era significativa. No final do século XVI, um médico italiano chamado Santorio Sanctorius inventou uma “cadeira de pesagem”, pendurada em uma balança gigante, na qual ele se sentava em intervalos regulares para pesar a si mesmo, tudo o que comia e bebia, e toda a fezes e urina que produzia. Apesar de 30 anos de compulsão por balanças, Sanctorius respondeu a poucas de suas próprias perguntas sobre o impacto que seu consumo tinha em seu corpo.

Somente mais tarde é que o foco se deslocou para a energia contida nos diferentes alimentos. No século XVIII, Antoine Lavoisier, um aristocrata francês, descobriu que queimar uma vela exigia um gás do ar – ao qual deu o nome de oxigênio – para alimentar a chama e liberar calor e outros gases. Ele aplicou o mesmo princípio aos alimentos, concluindo que eles alimentam o corpo como um fogo de queima lenta. Ele construiu um calorímetro, um dispositivo grande o suficiente para conter uma cobaia, e mediu o calor que o animal gerava para estimar quanta energia estava produzindo. Infelizmente, a Revolução Francesa – especificamente a guilhotina – interrompeu seus estudos sobre o assunto. Mas ele havia iniciado algo. Outros cientistas mais tarde construíram “calorímetros bomba” nos quais queimavam alimentos para medir o calor – e, portanto, a energia potencial – liberada deles.

A caloria – que vem de “calor”- foi originalmente usada para medir a eficiência de motores a vapor: uma caloria é a energia necessária para aquecer 1kg de água em um grau Celsius. Somente na década de 1860 os cientistas alemães começaram a usá-la para calcular a energia nos alimentos. Foi um químico agrícola americano, Wilbur Atwater, quem popularizou a ideia de que ela poderia ser usada para medir tanto a energia contida nos alimentos quanto a energia que o corpo gastava em coisas como trabalho muscular, reparo de tecidos e alimentação dos órgãos. Em 1887, após uma viagem à Alemanha, ele escreveu uma série de artigos extremamente populares na revista americana Century, sugerindo que “a comida é para o corpo o que o combustível é para o fogo”. Ele apresentou ao público a noção de “macronutrientes” – carboidratos, proteínas e gorduras – assim chamados porque o corpo precisa de uma quantidade significativa deles.

Hoje, muitos de nós desejam monitorar nosso consumo de calorias para perder ou manter nosso peso. Atwater, filho de um ministro metodista, foi motivado pela preocupação oposta: em uma época em que a desnutrição era generalizada, ele procurava ajudar as pessoas pobres a encontrar os itens mais econômicos para saciar sua fome.

Para verificar quanto de energia diferentes macronutrientes forneciam ao corpo, ele forneceu amostras de uma dieta “média” americana daquela época – que ele acreditava ser rica em biscoitos de melaço, farinha de cevada e moelas de frango – a um grupo de estudantes do sexo masculino em uma sala de experiências na Universidade Wesleyan em Middletown, Connecticut. Por até 12 dias de cada vez, um voluntário comia, dormia e levantava pesos enquanto estava selado dentro de uma câmara com três metros de altura por quatro metros de largura e cinco de profundidade. A energia em cada refeição era calculada queimando alimentos idênticos em um calorímetro bomba.

As paredes eram preenchidas com água, e as mudanças em sua temperatura permitiam a Atwater calcular quanto de energia os corpos dos estudantes estavam gerando. Sua equipe coletava as fezes dos estudantes e as queimava para ver quanto de energia havia sido deixado no corpo no processo de digestão.

Isso foi pioneiro para a década de 1890. Eventualmente, Atwater concluiu que um grama de carboidrato ou proteína disponibilizava em média quatro calorias de energia para o corpo, e um grama de gordura oferecia uma média de 8,9 calorias, um número que foi posteriormente arredondado para nove calorias por conveniência. Agora sabemos muito mais sobre o funcionamento do corpo humano: Atwater estava certo de que parte da energia potencial de uma refeição era excretada, mas não tinha ideia de que parte dela também era usada para digerir a própria refeição, e que o corpo gasta quantidades diferentes de energia dependendo do alimento. No entanto, mais de um século após a ignição das fezes dos estudantes de Wesleyan, os números calculados por Atwater para cada macronutriente continuam sendo o padrão para medir as calorias em qualquer alimento específico. Esses experimentos foram a base da aritmética calórica diária de Bruno Dantas.

Atwater transformou a maneira como o público pensava sobre comida, com sua crença simples de que “uma caloria é uma caloria”. Ele aconselhava os pobres a não comerem muitos vegetais de folhas verdes porque não eram suficientemente densos em energia. Segundo ele, não fazia diferença se as calorias vinham do chocolate ou do espinafre: se o corpo absorvesse mais energia do que usava, armazenaria o excesso como gordura corporal, fazendo com que você ganhasse peso.

Essa ideia capturou a imaginação do público. Em 1918, o primeiro livro foi publicado na América com base na noção de que uma dieta saudável não era mais complicada do que a simples adição e subtração de calorias. “Você pode comer o que quiser – doces, torta, bolo, carne gorda, manteiga, creme – mas conte suas calorias!” escreveu Lulu Hunt Peters em “Dieta e Saúde”. “Agora que você sabe que pode ter as coisas que gosta, passe a fazer seus cardápios contendo muito pouco delas.” O livro vendeu milhões de cópias.

Na década de 1930, a caloria estava enraizada tanto na mente pública quanto na política governamental. Seu foco exclusivo no conteúdo energético dos alimentos, em vez de seu conteúdo vitamínico, por exemplo, praticamente não foi contestado. O aumento da renda e uma maior participação das mulheres na força de trabalho significavam que, até a década de 1960, as pessoas estavam comendo fora com mais frequência ou comprando alimentos preparados, então elas queriam mais informações sobre o que estavam consumindo. As informações nutricionais nos alimentos eram amplamente disponíveis, mas desorganizadas; muitos produtos apresentavam reivindicações extravagantes sobre seus benefícios para a saúde. A rotulagem tornou-se padronizada e obrigatória nos Estados Unidos apenas em 1990.

A ênfase e o uso dessa informação também mudaram. No final da década de 1960, a obesidade estava se tornando uma preocupação de saúde urgente à medida que as pessoas se tornavam mais sedentárias e começavam a consumir alimentos altamente processados e ricos em açúcar. À medida que o número de pessoas que precisavam perder peso aumentava, as dietas tornaram-se o foco de atenção.

Assim começou a guerra contra a gordura, na qual os cálculos de calorias de Atwater foram aliados involuntários. Porque contar calorias era visto como um árbitro objetivo das qualidades de saúde de um alimento, parecia lógico que a parte mais rica em calorias de qualquer item alimentar – a gordura – deveria ser prejudicial. Por essa medida, pratos com baixas calorias, mas ricos em açúcar e carboidratos, pareciam mais saudáveis. As pessoas estavam cada vez mais dispostas a culpar a gordura por muitos dos males de saúde da vida moderna, ajudadas pelo lobby do açúcar: em 2016, um pesquisador da Universidade da Califórnia descobriu documentos de 1967 mostrando que empresas de açúcar financiaram secretamente estudos na Universidade Harvard destinados a culpar a gordura pelo crescente problema de obesidade. O fato de a “gordura” alimentar encontrada no azeite de oliva, bacon e manteiga ser rotulada com a mesma palavra que a carne indesejada ao redor de nossas cinturas tornou ainda mais fácil demonizá-la.

Um relatório do comitê do Senado dos EUA em 1977 recomendou uma dieta com baixo teor de gordura e colesterol para todos, e outros governos seguiram o exemplo. A indústria alimentícia respondeu com entusiasmo, removendo a gordura, o macronutriente mais rico em calorias, de produtos alimentícios e substituindo-o por açúcar, amido e sal. Como bônus, os milhares de novos produtos “baixos em calorias” e “baixos em gordura” baratos e saborosos que Dantas usava para fazer dieta tendiam a ter prazos de validade mais longos e margens de lucro mais altas.

Mas isso não levou às melhorias esperadas na saúde pública. Em vez disso, coincidiu quase exatamente com o aumento mais dramático da obesidade na história humana. Entre 1975 e 2016, a obesidade quase triplicou em todo o mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS): quase 40% dos maiores de 18 anos – cerca de 1,9 bilhão de adultos – agora estão com sobrepeso. Isso contribuiu para um rápido aumento nas doenças cardiovasculares (principalmente doenças cardíacas e derrames), que se tornaram a principal causa de morte em todo o mundo. As taxas de diabetes tipo 2, frequentemente associadas ao estilo de vida e à dieta, mais que dobraram desde 1980.

Não foram apenas os países ricos que viram essas tendências. No Brasil, famílias urbanas de classe média, como a de Dantas, também engordaram. Quando criança, Dantas era atlético e adorava jogar futebol. Mas, aos dez anos, em 1988, ele foi um dos muitos jovens que começaram a ganhar peso à medida que o aumento do comércio inundava as lojas com doces baratos e refrigerantes, um processo conhecido como “coca-colonização”. “De repente, havia todos esses sabores que você nunca tinha experimentado, com chocolates, doces e Dr Pepper”, lembra Dantas: “Da noite para o dia, engordei.”

Para combater essa tendência, governos em todo o mundo consagraram a contagem de calorias em suas políticas. A OMS atribui a “causa fundamental” da obesidade em todo o mundo a “um desequilíbrio energético entre calorias consumidas e calorias gastas”. Governos do mundo todo persistem em oferecer o mesmo conselho: contar e reduzir calorias. Isso infiltrou-se em cada vez mais áreas da vida. Em 2018, o governo americano ordenou que redes de alimentos e máquinas de venda automática fornecessem detalhes de calorias em seus cardápios, para ajudar os consumidores a tomar decisões “informadas e saudáveis”. A Austrália e o Reino Unido estão seguindo direções semelhantes. Órgãos governamentais aconselham os que fazem dieta a registrar suas refeições em um diário de calorias para perder peso. Os esforços experimentais de um cientista do século XIX mal mudaram – e mal são questionados.

Milhões de pessoas que fazem dieta desistem quando sua contagem de calorias não é bem-sucedida. Dantas foi mais obstinado do que a maioria. Ele tirava fotos de suas refeições para registrar sua ingestão com mais precisão e acessava suas planilhas de calorias pelo telefone. Ele pensava em cada pedacinho que comia. E comprou uma proliferação de dispositivos para rastrear sua produção de calorias. Mas ainda assim ele não perdeu muito peso.

Um problema era que seus cálculos se baseavam na ideia de que as contagens de calorias são precisas. Os fabricantes de alimentos fornecem leituras impressionantemente específicas: uma fatia da pizza de pepperoni duplo da Domino’s, a favorita de Dantas, supostamente contém 248 calorias (não 247 nem 249). No entanto, as contagens de calorias listadas em embalagens de alimentos e cardápios costumam estar erradas.

Susan Roberts, uma nutricionista da Universidade Tufts em Boston, descobriu que os rótulos dos alimentos embalados nos Estados Unidos subestimam suas contagens reais de calorias em uma média de 8%. As regulamentações governamentais americanas permitem que esses rótulos subestimem as calorias em até 20% (para garantir que os consumidores não sejam prejudicados em termos de quanto nutrição estão recebendo). As informações sobre alguns alimentos processados congelados equivocam-se quanto ao conteúdo calórico em até 70%.

Esse não é o único problema. As contagens de calorias baseiam-se em quanto calor um alimento libera quando queima em um forno. Mas o corpo humano é muito mais complexo do que um forno. Quando um alimento é queimado em laboratório, ele libera suas calorias em questão de segundos. Em contraste, a jornada da vida real do prato de jantar até o vaso sanitário leva em média cerca de um dia, mas pode variar de oito a 80 horas, dependendo da pessoa. Uma caloria de carboidrato e uma caloria de proteína têm a mesma quantidade de energia armazenada, então se comportam de maneira idêntica em um forno. Mas coloque essas calorias em corpos reais e elas se comportam de maneira bastante diferente. E ainda estamos aprendendo novos insights: pesquisadores americanos descobriram no ano passado que, por mais de um século, temos exagerado em cerca de 20% o número de calorias que absorvemos das amêndoas.

O processo de armazenamento de gordura – o “peso” que muitas pessoas buscam perder – é influenciado por dezenas de outros fatores. Além das calorias, nossos genes, os trilhões de bactérias que vivem em nosso intestino, a preparação dos alimentos e o sono afetam como processamos os alimentos. Discussões acadêmicas sobre alimentação e nutrição estão repletas de referências a enormes volumes de pesquisas que ainda precisam ser conduzidas. “Nenhum outro campo da ciência ou medicina vê uma falta tão grande de estudos rigorosos”, diz Tim Spector, professor de epidemiologia genética no King’s College em Londres. “Podemos criar DNA sintético e clonar animais, mas ainda sabemos incrivelmente pouco sobre as coisas que nos mantêm vivos.”

O que sabemos, no entanto, sugere que contar calorias é muito rudimentar e muitas vezes enganoso. Pense em um hambúrguer, o tipo de alimento que Dantas evitava durante seus primeiros esforços para perder peso. Dê uma mordida e a saliva em sua boca começa a quebrá-lo, um processo que continua quando você engole, transportando o pedaço em direção ao seu estômago e além, para ser mais triturado. O processo digestivo transforma a proteína, os carboidratos e a gordura do hambúrguer em seus compostos básicos, de modo que se tornem pequenos o suficiente para serem absorvidos na corrente sanguínea através do intestino delgado, alimentando e reparando os trilhões de células no corpo. Mas as moléculas básicas de cada macronutriente desempenham papéis muito diferentes dentro do corpo.

Todos os carboidratos se decompõem em açúcares, que são a principal fonte de combustível do corpo. Mas a velocidade com que seu corpo obtém seu combustível dos alimentos pode ser tão importante quanto a quantidade de combustível. Carboidratos simples são absorvidos rapidamente na corrente sanguínea, fornecendo um rápido impulso de energia: o corpo absorve o açúcar de uma lata de refrigerante a uma taxa de 30 calorias por minuto, em comparação com duas calorias por minuto de carboidratos complexos como batatas ou arroz. Isso importa, porque uma súbita ingestão de açúcar provoca a liberação rápida de insulina, um hormônio que retira o açúcar da corrente sanguínea e o leva para as células do corpo. Problemas surgem quando há muito açúcar no sangue. O fígado pode armazenar parte do excesso, mas qualquer quantidade remanescente é guardada como gordura. Portanto, consumir grandes quantidades de açúcar é a maneira mais rápida de criar gordura corporal. E, uma vez que a insulina fez seu trabalho, os níveis de açúcar no sangue diminuem, o que tende a deixá-lo com fome, além de mais cheio.
Engordar é uma consequência da civilização. Nossos ancestrais talvez desfrutassem de uma carga pesada de açúcar cerca de quatro vezes por ano, quando uma nova estação produzia frutas frescas. Muitos agora desfrutam desse tipo de estímulo de açúcar todos os dias. A pessoa média no mundo desenvolvido consome 20 vezes mais açúcar do que as pessoas consumiam mesmo durante a época de Atwater.

Mas a história é diferente quando você consome carboidratos complexos, como cereais. Estes são formados a partir de carboidratos simples, então também se decompõem em açúcar, mas porque o fazem mais lentamente, seus níveis de açúcar no sangue permanecem mais estáveis. Os sucos de frutas que Dantas foi incentivado a beber continham menos calorias do que um de seus pães integrais, mas o pão proporcionava menos impacto de açúcar e o deixava saciado por mais tempo.

Outros macronutrientes têm funções diferentes. A proteína, o componente dominante de carne, peixe e produtos lácteos, atua como o principal bloco de construção para os ossos, pele, cabelo e outros tecidos corporais. Na ausência de quantidades suficientes de carboidratos, ela também pode servir como combustível para o corpo. Mas, como é decomposta mais lentamente do que os carboidratos, a proteína é menos propensa a ser convertida em gordura corporal.

A gordura é uma questão diferente. Deve deixar você se sentindo mais satisfeito por mais tempo, porque o corpo a divide em ácidos graxos minúsculos mais lentamente do que processa carboidratos ou proteínas. Todos precisamos de gordura para produzir hormônios e proteger nossos nervos (um pouco como o revestimento plástico protege um fio elétrico). Ao longo dos milênios, a gordura também foi uma maneira crucial para os humanos armazenarem energia, permitindo-nos sobreviver a períodos de fome. Hoje em dia, mesmo sem o risco de inanição, nossos corpos estão programados para armazenar combustível em excesso, caso fiquemos sem comida. Não é de surpreender que uma única medida – o conteúdo de energia – não consiga capturar tanta complexidade.

Nossa obsessão por contar calorias assume tanto que todas as calorias são iguais quanto que todos os corpos respondem às calorias de maneiras idênticas: Dantas foi informado de que, sendo homem, precisava de 2.500 calorias por dia para manter seu peso. No entanto, um crescente número de pesquisas mostra que, quando pessoas diferentes consomem a mesma refeição, o impacto no nível de açúcar no sangue e na formação de gordura de cada pessoa variará de acordo com seus genes, estilos de vida e a mistura única de bactérias intestinais.

Pesquisas publicadas neste ano mostraram que um conjunto específico de genes é encontrado com mais frequência em pessoas com sobrepeso do que em pessoas magras, sugerindo que algumas pessoas precisam se esforçar mais do que outras para permanecer magras (um fato que muitos de nós já sentíamos intuitivamente ser verdadeiro). Diferenças nos microbiomas intestinais podem alterar como as pessoas processam os alimentos. Um estudo com 800 israelenses em 2015 descobriu que o aumento nos níveis de açúcar no sangue deles variava em um fator de quatro em resposta a alimentos idênticos.
Os intestinos de algumas pessoas são 50% mais longos do que os de outras: aqueles com intestinos mais curtos absorvem menos calorias, o que significa que excretam mais da energia dos alimentos, ganhando menos peso.

A resposta do seu próprio corpo também pode mudar dependendo de quando você come. Perca peso e seu corpo tentará recuperá-lo, desacelerando seu metabolismo e até mesmo reduzindo a energia que você gasta se contorcendo e mexendo os músculos. Até mesmo seus horários de alimentação e sono podem ser importantes. Passar uma noite sem dormir o suficiente pode estimular seu corpo a criar mais tecido adiposo, o que lança uma luz sombria sobre os anos de esforço matinal de Dantas. Você pode ganhar mais peso comendo pequenas quantidades ao longo de 12-15 horas do que comendo a mesma quantidade de comida em três refeições distintas ao longo de um período mais curto.

Existe uma fraqueza adicional no sistema de contagem de calorias: a quantidade de energia que absorvemos dos alimentos depende de como os preparamos. Cortar e moer alimentos essencialmente faz parte do trabalho de digestão, tornando mais calorias disponíveis para o seu corpo ao rasgar as paredes celulares antes de comê-las. Esse efeito é ampliado quando você adiciona calor: cozinhar aumenta a proporção de alimentos digeridos no estômago e no intestino delgado, de 50% para 95%. As calorias digestíveis na carne de boi aumentam em 15% durante o cozimento e na batata-doce em cerca de 40% (a mudança exata depende se é cozida, assada ou no micro-ondas). Esse impacto é tão significativo que Richard Wrangham, primatologista da Universidade Harvard, considera que cozinhar foi necessário para a evolução humana. Ele possibilitou a expansão neurológica que criou o homo sapiens: alimentar o cérebro consome cerca de um quinto da energia metabólica de uma pessoa a cada dia (cozinhar também significa que não precisamos passar o dia todo mastigando, ao contrário dos chimpanzés).

A dificuldade em contar com precisão não para por aí. A carga calórica de itens ricos em carboidratos, como arroz, massa, pão e batatas, pode ser reduzida simplesmente cozinhando, resfriando e reaquecendo-os. À medida que as moléculas de amido esfriam, elas formam novas estruturas que são mais difíceis de digerir. Você absorve menos calorias comendo torradas que foram deixadas esfriar, ou espaguete que sobrou, do que se fossem feitos frescos. Cientistas no Sri Lanka descobriram em 2015 que poderiam reduzir pela metade as calorias potencialmente absorvidas do arroz adicionando óleo de coco durante o cozimento e depois resfriando o arroz. Isso tornou o amido menos digestível, então o corpo pode absorver menos calorias. Isso é ruim se você estiver desnutrido, mas uma bênção se estiver tentando perder peso.

Diferentes partes de um vegetal ou fruta podem ser absorvidas de maneira diferente também: folhas mais velhas são mais resistentes, por exemplo. O interior amiláceo dos grãos de milho é facilmente digerido, mas a casca de celulose é impossível de ser decomposta e passa pelo corpo sem ser tocada. Apenas pense naquele momento em que você olha para a bacia do vaso sanitário depois de comer milho.

Como acontece com muitos que fazem dieta, os esforços de Dantas para acompanhar com precisão suas calorias “ingeridas” estavam fadados ao fracasso. Mas também foram seus esforços para acompanhar suas calorias “queimadas”. A mensagem de muitas autoridades públicas e produtores de alimentos, especialmente empresas de fast-food que patrocinam eventos esportivos, é que até os alimentos mais prejudiciais não o farão engordar se você fizer sua parte praticando bastante exercício. O exercício, é claro, tem benefícios claros para a saúde. No entanto, a menos que você seja um atleta profissional, ele desempenha um papel menor no controle de peso do que a maioria das pessoas acredita. Até 75% do gasto diário médio de energia de uma pessoa não vem do exercício, mas de atividades diárias comuns e do funcionamento do corpo ao digerir alimentos, alimentar órgãos e manter uma temperatura corporal regular. Até beber água gelada – que não fornece energia – faz o corpo queimar calorias para manter sua temperatura preferida, tornando-a o único caso conhecido de consumir algo com calorias “negativas”. Uma expressão popular nos diz para não “comparar maçãs com laranjas” e assumir que são iguais: no entanto, as calorias colocam pizzas e laranjas, ou maçãs e sorvete, na mesma balança e as consideram iguais.

Após três anos dedicados à contagem de calorias, Dantas mudou de estratégia. Enquanto se recuperava da corrida internacional de São Silvestre em 2010, ele começou a fazer crossfit, um regime de exercícios que inclui treinamento de alta intensidade e levantamento de peso. Lá, ele conheceu pessoas que usavam um método muito diferente para controlar seu peso. Assim como ele, eles se exercitavam regularmente. Mas, em vez de limitar suas calorias, eles comiam alimentos naturais, o que Dantas chama de “coisas de uma planta real, não de uma planta industrial”.

Farto de se sentir um fracasso faminto, ele decidiu tentar. Abandonou seus produtos altamente processados e com baixas calorias e passou a focar na qualidade de sua comida em vez de na quantidade. Ele parou de se sentir faminto o tempo todo. “Pode parecer simples, mas decidi ouvir meu corpo e comer sempre que estava com fome, mas apenas quando estava com fome, e comer comida de verdade, não ‘produtos’ alimentares”, diz ele. Ele voltou a comer itens que havia proibido a si mesmo por muito tempo. Ele comeu seu primeiro pedaço de bacon em três anos e apreciou queijo, leite integral e bifes.

Ele imediatamente se sentiu menos faminto e mais feliz. Mais surpreendentemente, ele começou a perder rapidamente a gordura extra. “Eu estava dormindo muito melhor e, em questão de meses, parei de tomar os medicamentos para depressão e ansiedade”, diz ele. “Passei de me sentir sempre culpado, com raiva e com medo para me sentir no controle de mim mesmo e realmente orgulhoso do meu próprio corpo. De repente, eu podia comer e beber de forma saborosa.”

O peso permaneceu fora e, em 2012, se mudou para São Paulo para realizar seu mestrado em saúde pública. “A ideia me ocorreu de que eu poderia combinar minha própria experiência com o trabalho acadêmico para tentar ajudar outras pessoas a superar essas várias barreiras que eu havia encontrado.” Após o mestrado, ele embarcou em um doutorado sobre como lidar com a obesidade.
Hoje ele é casado e sua mulher estudou sistemas alimentares ao redor do mundo. Sua dieta inclui coisas que ele costumava evitar, como gemas de ovo, azeite de oliva e nozes. Dois dias por semana, o casal adere a refeições vegetarianas, mas, caso contrário, ele devora bife, rins, fígado e alguns de seus pratos favoritos – cordeiro, porco e tacos com carne grelhada.

Sua esposa gosta de fazer doce de quindim. “Antes, eu teria corrido duas horas a mais para compensar por comer isso, mas agora não me importo, só me certifico de que seja uma guloseima, não algo do dia a dia”. Depois de passar anos tentando evitar álcool, ele toma um ou dois copos de vinho várias vezes por semana e toma uma cerveja com amigos da academia.

Suando durante três ou quatro treinos por semana, ele está tão musculoso quanto um jogador profissional de futebol. Com 80 kg estáveis, ele tem muito pouco gordura corporal, embora ainda seja considerado acima do peso pelos gráficos de índice de massa corporal, que classificam muitos atletas profissionais musculosos como excessivamente pesados.

Hoje, Dantas poderia ser descrito como um dissidente das calorias, um dos poucos, mas crescentes, acadêmicos e cientistas que afirmam que a persistência da contagem de calorias agrava a epidemia de obesidade, em vez de remediá-la. Ele diz que contar calorias perturbou nossa capacidade de comer a quantidade certa de alimentos e nos guiou para escolhas ruins. Em 2017, ele escreveu um artigo acadêmico que foi um dos ataques mais severos ao sistema de calorias publicados em uma revista revisada por pares. “Eu realmente me sinto envergonhado pelo que costumava acreditar”, diz ele. “Eu estava fazendo tudo o que podia para seguir os conselhos oficiais, mas estava completamente errado, e me sinto bobo por nunca sequer questionar isso.”

Dado a vasta evidência de que a contagem de calorias é imprecisa no melhor dos casos e contribui para o aumento da obesidade no pior dos casos, por que ela persiste?

A simplicidade da contagem de calorias explica seu apelo. Métricas que informam os consumidores sobre o grau de processamento dos alimentos ou se eles suprimirão a fome são mais difíceis de entender. Diante do avanço das calorias, nenhuma delas conquistou ampla aceitação.

O estabelecimento científico e de saúde sabe que o sistema atual é falho. Um conselheiro sênior da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) alertou em 2002 que os “fatores” de 4-4-9 de Atwater, que estão no cerne do sistema de contagem de calorias, eram “uma simplificação excessiva” e tão imprecisos que poderiam levar os consumidores a escolher produtos não saudáveis, pois subestimam as calorias em alguns carboidratos. A organização afirmou que daria “mais consideração” à revisão do sistema, mas 17 anos depois, há pouco impulso para mudanças. A ideia de harmonizar os muitos métodos usados em diferentes países também foi rejeitada; um rótulo na Brasil pode fornecer uma contagem diferente de um nos Estados Unidos para o mesmo produto.
Os funcionários da OMS também reconhecem os problemas do sistema atual, mas afirmam que ele está tão enraizado no comportamento do consumidor, nas políticas públicas e nos padrões da indústria que seria muito caro e disruptivo fazer grandes mudanças. Os experimentos realizados por Atwater há um século, sem calculadoras ou computadores, nunca foram repetidos, mesmo com o vasto avanço em nossa compreensão de como nossos corpos funcionam. Há pouco financiamento ou entusiasmo para esse tipo de trabalho. Como Susan Roberts da Universidade Tufts afirma, coletar e analisar fezes “é o pior trabalho de pesquisa do mundo”.

O sistema de calorias, diz Dantas, livra os produtores de alimentos de qualquer responsabilidade: “Eles podem dizer, ‘Não somos responsáveis pelos produtos não saudáveis que vendemos, apenas temos que listar as calorias e deixar você gerenciar seu próprio peso'”. Dantas e outros dissidentes das calorias argumentam que o açúcar e os carboidratos altamente processados causam estragos nos sistemas hormonais das pessoas. Níveis mais altos de insulina significam que mais energia é convertida em tecidos adiposos, deixando menos disponível para alimentar o restante do corpo. Isso, por sua vez, gera fome e consumo excessivo de alimentos. Em outras palavras, a fome constante e a fadiga sofridas por Dantas e outros que fazem dieta podem ser sintomas de estar com excesso de peso, em vez de serem a causa do problema. No entanto, grande parte da indústria alimentícia também defende o status quo. Mudar a forma como avaliamos os valores energéticos e de saúde dos alimentos minaria o modelo de negócios de muitas empresas.

A única grande organização a mudar o foco além das calorias é aquela dedicada a ajudar seus clientes a emagrecer: a Weight Watchers. Em 2001, a empresa de dietas mais conhecida do mundo introduziu um sistema de pontos que deixou de se concentrar exclusivamente em calorias, passando a classificar os alimentos também de acordo com seu teor de açúcar e gordura saturada, e seu impacto no apetite. Chris Stirk, o gerente geral da empresa na Grã-Bretanha, diz que a organização fez a mudança porque depender de calorias para perder peso é “ultrapassado”: “A ciência evolui diariamente, mensalmente, anualmente, para não mencionar desde o século XIX”.

Muitos de nós sabem instintivamente que nem todas as calorias são iguais. Um pirulito e uma maçã podem ter números semelhantes de calorias, mas a maçã é claramente melhor para nós. Mas, depois de uma vida ouvindo sobre a caloria e seu papel nas supostamente infalíveis dicas de dieta, podemos ser perdoados por ficarmos confusos sobre a melhor forma de comer. É hora de deixar isso de lado.

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Investidor com extenso track record na indústria de investimentos alternativos e operações estruturadas. Venture Partner da FIR Capital.

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